quarta-feira, 31 de março de 2010

«Tentar e falhar é, pelo menos
aprender.
Não chegar a tentar é
sofrer a inestimável
perda do que poderia
ter sido»


Geraldo Eustáquio

Nick Drake- Way To Blue

terça-feira, 30 de março de 2010

AMOROSA ANTICIPACIÓN

Ni la intimidad de tu frente clara como una fiesta
ni la costumbre de tu cuerpo, aún misterioso y tácito y de niña,
ni la sucesión de tu vida asumiendo palabras o silencios
serán favor tan misterioso
como el mirar tu sueño implicado
en la vigilia de mis brazos.
Virgen milagrosamente otra vez por la virtud absolutoria del sueño,
quieta y resplandeciente como una dicha que la memoria elige,
me darás esa orilla de tu vida que tú misma no tienes,
Arrojado a quietud
divisaré esa playa última de tu ser
y te veré por vez primera, quizá,
como Dios ha de verte,
desbaratada la ficción del Tiempo
sin el amor, sin mí.


Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,pp 9.

PARA UNA CALLE DEL OESTE

Me darás una ajena inmortalidad, calle sola.
Eres ya sombra de mi vida.
Atraviesas mis noches con ti segura rectitud de estocada.
La muerte -tempestad oscura e inmóvil- desbandará mis horas.
Alguien recogerá mis pasos y usurpará mi devoción y esa estrella.
(La lejanía como un largo viento ha de flagelar su camino.)
Aclarado de noble soledad, pondrá una misma anhelación en tu cielo.
Pondrá esa misma anhelación que yo soy.
Yo resurgiré en su venidero asombro de ser.
En ti otra vez:
Calle que dolorosamente como una herida te abres.



Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,pp 22.

Elegia IX - Outonal

Nenhuma beleza de Primavera ou Verão em tal graça
Como a que descobri numa face Outonal.
As jovens Belezas forçam-nos ao amor: isso é Violação;
Esta apenas aconselha, e não lhe podemos escapar.
Se fosse vergonha amar, não seria vergonha aqui
Onde a Afeição toma o nome de Reverência.
Foram-lhe os primeiros anos a Idade de Ouro? É verdade,
Mas ela agora é ouro bem martelado e sempre novo.
Aquele foi o seu tempo tórrido e inflamador,
Este é o seu temperado clima Tropical.
Olhos belos, quem vos pedir mais fogo que o emanado,
É porque, febril, deseja a pestilência.
Não chamem campas a estas rugas; se campas fossem
Seriam as do amor, porque ele não está noutro lugar.
Porém o amor não jaz aqui morto, mas aqui se senta
Consagrado a esta trincheira, como um Anacoreta;
E aqui até que a morte dela, que será a dele, chegue
Não cavará uma Campa, mas erigirá um Túmulo.
Aqui habita; e apesar de viajar por todo o lado
Com Estadão, é ainda aqui a sua residência fixa:
Aqui onde está calma a Tarde, não o meio-dia ou a noite,
Sem voluptuosidades, porém toda deleite.
Todas as palavras dela, próprias a todos os ouvintes
Seja no Folgar, seja em Conselho, podemos seguir.
Este é o madeiro do amor, a juventude os seus arbustos;
Ali ele, como vinho em Junho, faz ferver o sangue,
Que depois se tempera, quando o nosso gosto
E apetite de outras coisas é passado.
O estranho amor Lídio de Xerxes, o Plátano,
Foi amado pela idade, e porque nenhum era maior,
Ou então porque, sendo jovem, a natureza lhe abençoou
A juventude com a glória da idade, a Esterilidade.
Se amamos as coisas há muito procuradas, a Idade é algo
Que levamos cinquenta anos a conquistar.
Se as coisas são transitórias, e cedo se corrompem,
A Idade será mais amável nos seus últimos dias.
Mas não nomeiam Faces Invernais, de pele flácida,
Descarnadas como um saco vazio, antes a bolsa da alma;
Cujos Olhos buscam luz de dentro, pois tudo aqui é sombra;
Cujas bocas são buracos, mais gastos do que feitos;
Em que um a um cada dente partiu para vários lugares
A fim de lhes humilhar as almas na Ressurreição:
Não me nomeiem essas Cabeças mortas viventes,
Porque estas não são Anciãs, mas Antigas.
Odeio extremos; porém antes preferia ficar
Com Tumbas do que Berços;para passar um dia.
Dado que tal é o movimento natural do amor, possa ainda
O meu amor abrandar, e viajar monte abaixo
Nunca a suspirar atrás de belezas em crescimento. Assim,
Irei definhando no fluxo dos que se dirigem para casa.



John Donne in Elegias Amorosas. Edição bilingue. Trad. Helena Barbas. Assírio & Alvim, 1997.,pp49/51

segunda-feira, 29 de março de 2010

L'esprit

Éternelles Ondines
Divisez l'eau fine.
Vénus, soeur de l'azur,
Émeus le flot pur.

Juifs errants de Norwège
Dites-mois la neige.
Anciens exilés chers,
Dites-moi la mer.

Moi - Non, plus ces boissons pures,
Ces fleurs d'eau pour verres
Légendes ni figures
Ne me désaltèrent

Cansonnier, ta filleule
C'est ma soif si folle
Hydre intime sans gueules
Qui mine et désole.


Rimbaud in Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche. pp. 233.

Monica Bellucci


domingo, 28 de março de 2010

«O primeiro pormenor que me despertou a atenção, quando avançava lentamente por uma clareira do bosque, foi um enorme besouro a debater-se de pernas para o ar, o que me levou a pousar um joelho no chão para ajudar o pobrezinho a voltar de novo à sua posição normal. De certo modo, sabe que não pode ter a certeza daquilo que um insecto deseja; por exemplo, eu nunca fui totalmente capaz de determinar, caso fosse uma borboleta nocturna, se preferia que me afastassem da candeia ou me deixassem voar directamente para ela e queimar-me... ou então, se fosse uma aranha, não sei bem se ficaria muito satisfeito ao ver a minha teia destruída e a mosca em liberdade... Mas tenho a certeza de que, se fosse um besouro que tivesse rolado e ficado de costas, sentir-me-ia feliz quando me ajudassem a endireitar.»



Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003., pp.157
«Em primeiro lugar, quero saber - meu querido e tão jovem leitor - por que razão as Fadas têm sempre de nos estar a ensinar o nosso dever e de nos censurar quando erramos, e nós nunca lhes ensinamos coisa alguma?Não me quer convencer que as Fadas nunca são ambiciosas, egoístas, falsas, mal-humoradas, porque isso seria um disparate, como sabe. Bem, não acha que se sentiriam melhor se se lhes ralhasse ou fossem castigadas de vez em quando?
Na verdade não vejo por que não se há-de experimentar e tenho quase a certeza que se pelo menos conseguisse agarrar uma Fada, -la a um canto e dar-lhe só pão e água durante um dia ou dois, descobriria nelas um melhor carácter - pelo menos, deitar-lhe-ia abaixo um pouco da sua vaidade.»


Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003., pp.156
(...)


Que a nossa vida seja nossa: ninguém mais
a vive senão nós. Que a nossa voz
seja alheia: outros que falem por conta própria
ou por conta do que acham próprio. E,
se nos disserem que nos não entendem,
respondamos que a honra não se entende
onde o sentido dela se perdeu. E que,
quer queiram quer não queiram, ela existe
e há, desde o princípio do mundo, homens com o encargo
de velar por ela. Não serão felizes, não serão
amados, não serão sobretudo criaturas fáceis,
que obedeçam às ordens de quem não aceitaram que os
[mandasse.

21 de Maio de 1964


excerto da dedicácia Epístola a Álvaro Salema, publicada na revista Hífen, Porto, nº6, Fevereiro de 1991.


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp.31/2

Sua Putidade o Crimertídaco

Esse filho de quem nem pode chamar-se bem uma puta,
persegue-me, arranha-me, arrepela-me, cospe
sempre ao meu lado, e nos lugares aonde
julga que eu passei. Filho, como é,
do que nem pode chamar-se bem
uma puta, vive de cuspir, de arrepelar
de arranhar, de perseguir as sombras
que ele julga serem as de quem não passa
nos becos onde a mãe o deu à luz,
depois de untada a vida com lubrificante
que lhe ficou, brilhantina, agarrado ao cabelo,
e a mãe, logo que o viu, lhe calçou
meias verdes e lhe comeu o imbigo.
Filho do que, de puta, nem por prenha basta
para gerar um esterco assim tão penteado,
tão crítico, tão de meias verdes,
tão arrotantemente porco nas regueifas que
do cachaço ascendem ao tutano encefálico,
julga suinamente que não há lugares,
nem seres humanos, livres de presença
de Sua Putidade. Há.
Exactamente as pessoas e os lugares aonde
ser filho da puta é ser filho da puta,
com ou sem regueifas nas ideias
ou verdura nas meias,
ou brilhantina uterina
de quem lambido foi em sua mãe
antes de nascer para cri-mer--da-co.

3 de Agosto de 1962
Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp.29

quinta-feira, 25 de março de 2010

terça-feira, 23 de março de 2010

«Rilke não procura dar conselhos sobre composição poética e evita o papel de crítico que, ao contrário de Virginia Woolf, considera inútil ou nefasto, pois as obras de arte « são de uma solidão infinita». Em termos práticos, limita-se a sugerir que evite o caminho demasiado percorrido da poesia de amor, até porque «num único pensamento criativo revivem mil noites de amor esquecidas».Rainer Maria Rilke defende a poesia como expressão de uma realização interior; a arte como forma de vida, vê na busca das profundezas de si, nas recordações de infância, na depuração dos sentimentos pela solidão, a espera e o sofrimento, a garantia da autenticidade»

Excerto do Prefácio de Francisco Vale ao livro:
Rainer Maria Rilke e Virginia Woolf in Cartas a Jovens Poetas. Relógio D'Água Editores, 2003., pp 19

Cartas a Um Jovem Poeta

« (...)é bom estar só, pois a solidão é difícil, mas o facto de uma coisa ser difícil é mais uma razão para que a façamos.
Também amar é bom, pois o amor é difícil. Amor de um ser humano por outro: isso é talvez o mais difícil que nos está destinado, o extremo, a prova e o exame final, a obra para a qual toda as outras são apenas preparação. É por isso que os jovens, novos em todas as coisas, ainda não sabem amar: têm de aprender primeiro. Têm de aprender a amar, com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas no coração que bate inquieto e ansioso. Mas o tempo de aprender é sempre prolongado e fechado, e assim é o amor por muito tempo e pela vida fora; a solidão é para aquele que ama um isolamento intenso e profundo. Amar não é, antes de mais, nada adquirido que se designa por abrir-se, entregar-se e unir-se a outra pessoa (pois o que seria uma união do ainda impreciso, do ainda por ordenar - ?) mas é um ensejo sublime para o indivíduo amadurecer - tornar-se algo dentro de si próprio, tornar-se mundo, mundo para si por amor a outra pessoa, é uma grande e ambiciosa exigência para ele, algo que o torna eleito e o destina à grandeza. Só neste sentido, como obrigação assumida de se trabalharem a si próprios («escutar e martelar noite e dia»), é que os jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é oferecido. A perda no outro e a entrega a qualquer espécie de comunhão não é para eles (que ainda terão de poupar e juntar durante muito tempo, muito tempo) - é a finalização, é talvez aquilo para que as vidas quase já não chegam.

Rainer Maria Rilke in Cartas a Jovens Poetas. Trad. de Lino Marques Relógio D'Água Editores, 2003., pp 68/69

segunda-feira, 22 de março de 2010

92

Eu não sou eu.
Sou este
que vai a meu lado sem eu vê-lo;
que, por vezes, vou ver,
e que, às vezes, esqueço.
O que se cala, sereno, quando falo,
o que perdoa, doce, quando odeio,
o que passeia por onde estou ausente,
o que ficará de pé quando eu morrer.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.96

domingo, 21 de março de 2010

Arte Poética

Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver só na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar Ítaca
Verde e humilde, A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue.
Selecção e Trad. Ruy Belo. Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.63-65
(...)

Está sozinho, sonhando-se. (Que a glória
É uma das maneiras do olvido.)

Pelos vidros a iluminação
Duma tarde mais toca o livro de couro
E outra vez arde outra se gasta o ouro
Que envaidece a encardenação.

Na solitária sala o silencioso
Livro viaja no tempo. As auroras
Ficam p'ra trás e as nocturnas horas
E a minha vida, sonho pressuroso.


(excerto do poema Ariosto e os árabes)


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue.
Selecção e Trad. Ruy Belo. Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.57

Viajar é muito útil, faz trabalhar a
imaginação. O resto não passa de
decepções e fadigas. A nossa viagem é
inteiramente imaginária. Daí a sua
força.

Vai da vida até à morte. Homens,
animais, cidades e coisas, é tudo
imaginado. Um romance, apenas uma
história fictícia. Di-lo Littré, que nunca
se engana.

Aliás, à primeira vista todos podem
fazer o mesmo. Basta fechar os olhos.

É do outro lado da vida.


Louis-Ferdinand Céline in Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Biblioteca Angelica, Rome, Italy

A partir do deserto

Abre-se o espaço uma corola se abre
a partir do deserto
um silêncio se apaga outro silêncio de água

Desce a dançarina exacta
até ao extremo da brancura

A noite é verde
na distância dos cabelos
nenhuma imagem subsiste
nenhuma gota de sangue
o sol repousa numa obscura nuvem

Absoluta a suavidade sem espera
um aroma sem aroma
o silêncio entre os corpos


António Ramos Rosa in Gravitações. Colecção de Viva Voz. Litexa, 1983, pp.20

Não dissemos as palavras mais simples

Não dissemos as palavras mais simples
a caligrafia das águas sobre a pedra uma pedra vacila
verde
as árvores despertam dormem apertadas na concavidade
do rumor
não dissemos ainda as pálpebras longínquas do horizonte
o trémulo deslumbramento da água jorrando lisa da terra
não dissemos a progressão das formigas em torno da árvore
de claras malhas como um leopardo
não dissemos as vagas sombras imóveis as folhas verdes
as altas e negras flores nas varandas suspensas
não dissemos sequer o nascimento da terra e do cavalo
as manhãs a meia-noite o turbilhão
do ventre o arranque para a primeira explosão no mar e o muro
onde o tempo se condensa como um navio suspenso sobre
o mar vertical

António Ramos Rosa in Gravitações. Colecção de Viva Voz. Litexa, 1983, pp.11

quarta-feira, 17 de março de 2010

Uma mulher estranha

«Temos que voltar para casa. Os trenós rangem no gelo. Uma brisa suave atira-nos ao rosto com pequenos flocos de neve, e vemos então a luz das lâmpadas eléctricas como que através de um prisma. No cais, as casas iluminadas parecem enormes. Estreito levemente Natália pela cintura; mas não me atrevo a apertá-la mais. Sinto um milhão de sensações finas, subtis - mas as palavras não me ocorrem e não sei que lhe hei-de dizer. Em que está pensando a sua linda cabeça pequenita, que ela protegeu com o regalo? E forço-me por me lembrar do seu rosto, que agora não vejo e de que me esqueci completamente. Tenho junto de mim uma mulher que não conheço e que quero conhecer. Para quê? Para uma pequena e vulgar aventura amorosa? Não, não! Nada d'isso!
-Voltemos para casa.
-Sim, minha querida. Se me vierem à cabeça ideias vis a seu respeito, matar-me-ei.
Vejo que sofre, que é um ser que mal começou a viver e já tem o coração despedaçado. Lá em casa espera-a o marido moribundo. E um drama - e não se sabe qual dos dois sofre mais.»



N. Garin in Uma Mulher Estranha. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.128/129

segunda-feira, 15 de março de 2010

66/ Solidão

(1 de Fevereiro)


Estás todo em ti, mar,e, todavia,
como sem ti estás, que solitário,
que distante, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas, como os meus pensamentos,
vão e vêm, vão e vêm,
beijando-se, afastando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se.

És tu e não o sabes,
pulsa-te o coração e não o sente...
Que plenitude de solidão, mar solitário!


Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.82

(Oberón a Titania)
Deixo correr meu sangue,
para que te persiga...
Não esperes que derrame
a última gota, pra fazer-te minha!




Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.69

O Tango

Onde estarão? Pergunta a elegia
Sobre os que já não são, como se houvesse
Uma região onde o Ontem pudesse
Ser o Hoje, o Ainda, o Todavia.

Onde estará (repito) esse selvagem
Que ergueu, em tortuosas azinhagas
De terra ou em perdidas plagas,
A seita do punhal e da coragem?

Onde estarão aqueles que passaram,
Deixando à epopeia um episódio,
Uma fábula ao tempo, e que sem ódio,
Lucro ou paixão de amor se esfaquearam?

Procuro-os na lenda, na apagada
Brasa que, como uma indecisa rosa,
Conserva dessa chusma valorosa
De Corrales e Balvanera um nada.

Que escuras azinhagas ou que ermo
Do outro mundo habitará a dura
Sombra daquele que era sombra escura,
Muranã, essa faca de Palermo?

E esse Iberra (tenham dele piedade
Os santos) que na ponte duma via,
Matou o irmão, Ñato, que devia
Mais mortes que ele, ficando em igualdade?

Uma mitologia de punhais
No esquecimento aos poucos se desgasta.
E dispersou-se uma canção de gesta
Em sórdidas notícias policiais.

Há outra brasa, outra candente rosa
Dos seus restos totais conservadores;
Aí estão os soberbos matadores
E o peso da adaga silenciosa.

Embora a adaga hostil ou essa adaga,
O tempo, os dispersassem pelos lodos,
Hoje, p'ra além do tempo e da aziaga
Morte, no tango vivem eles todos.

Na música prosseguem, na mensagem
Das cordas da viola trabalhosa,
Que tece na toada venturosa
A festa, a inocência da coragem.

Vejo a roda amarela circular
Com leões e cavalos, oiço o eco
Desses tangos de Arolas e de Greco
Que vi bailar no meio da vereda,

Num instante que emerge hoje isolado,
Sem antes nem depois, contra o olvido,
E que tem o sabor do que, perdido,
Perdido está mas foi recuperado.

Os acordes conservam velhas cousas:
Ou a parreira ou o pátio ancestral.
(E por trás das paredes receosas
O Sul tem uma viola, um punhal.)

O tango, essa rajada, diabrura,
Os trabalhosos anos desafia;
Feito de pó e tempo, o homem dura
Menos que a leviana melodia,

Que é tempo somente. O tango cria
Um passado irreal, real embora.
Recordação que não pôde ir-se embora
Morta na luta, algures na periferia.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.43-47

Daqui
"The girl and the woman, in their new, their own unfolding, will but in passing be imitators of masculine ways, good and bad, and repeaters of masculine professions. After the uncertainty of such transition it will become apparent that women were only going through the profusion and the vicissitude of those (often ridiculous) disguises in order to cleanse their most characteristic nature of the distorting influences of the other sex...

This humanity of woman, borne its full time in suffering and humiliation, will come to light when she will have stripped off the conventions of mere femininity in the mutations of her outward status...

Some day there will be girls and women whose name will no longer signify merely an opposite of the masculine, but something in itself, something that makes one think, not of any complement and limit, but only of life and existence: the feminine human being."
Rainer Maria Rilke

sábado, 13 de março de 2010

Alice in wonderland

Limites

Destas ruas que afundam o poente
Uma (mas qual?) já tenho percorrido
Pela última vez, indiferente
E sem adivinhá-lo, submetido

A Quem prefixa omnipotentes normas
E uma secreta e rígida medida
Às sombras e aos sonhos e às formas
Que destecem e tecem esta vida.

Se para tudo há um termo e há medida,
Última vez e nunca mais e olvido,
Nesta casa de que pessoa querida
Nos despedimos sem ter sabido?

A noite cessa p'ra lá da vidraça
E da pilha dos livros que truncada
Sombra pela indecisa mesa espaça
Há-de havê-los dos quais não lemos nada.

No Sul ao menos um portão arruinado
Existe com jarrões de alvenaria
E nopais dentro, que me está vedado
Como se fosse uma litografia.

Fechaste alguma porta pela certa
E para sempre. Um espelho em vão te aguarda.
Julgavas a encruzilhada aberta
E Jano quadrifonte está de guarda.

Entre as tuas memórias uma existe
Que sem remédio se veio a perder;
Àquela fonte não te hão-de ver
Descer o branco sol, a lua triste.

Não volta a tua voz a quanto o persa
Disse em língua de aves e de rosas,
Quando ao sol-pôr, perante a luz dispersa,
Quiseres dizer inolvidáveis cousas.

E o incessante Ródano e o lago,
Esse ontem, sobre o qual hoje me inclino,
Tão perdido estará como Cartago,
Sepulta em fogo e sal pelo latino?

Parece-me na alva que soou
Vivo rumor de gente. Assim vos vais,
(Foi tudo quem me quis e me olvidou)
Espaço e tempo e Borges já deixais.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.31-33

domingo, 7 de março de 2010

30 / Mãos

Ai, tuas mãos carregadas de rosas! São mais puras
tuas mãos do que as rosas. E entre as folhas brancas,
surgem como se fossem estilhaços de estrelas,
asas de mariposas alvas, sedas cândidas.

Caíram-te da Lua? Ou acaso brincaram
numa Primavera celestial? São da alma?
...Têm vago esplendor de lírios de outro mundo;
deslumbram o que sonham, refrescam o que cantam.

Minha fronte serena-se, como um céu vespertino,
quando tu com tuas mãos entre suas nuvens andas;
se as beijo, a púrpura de brasa desta boca
empalidece do seu brancor de pedra de água.

Tuas mãos entre sonhos! Atravessam, quais pombas
de fogo branco, minhas visões turbadas,
e, na aurora, abrem-me, como com luz de ti,
a claridade suave do oriente de prata.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.53/54

sábado, 6 de março de 2010

13

A lua dourava o rio
- tão fresco da magrugada! -
Pelo mar vinham as ondas
tingidas da luz da alva.

O campo débil e triste
acendia-se. Ficava
o canto gasto de um grilo,
a queixa escura de uma água.

Fugia o vento à sua gruta,
o horror à sua cabana;
no verde dos pinheirais
entreabriam-se as asas.

Iam morrendo as estrelas,
roseava-se a montanha;
além no poço do horto,
uma andorinha cantava.

Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.39

Elegia V - Retrato Dele

Aqui está, toma o meu retrato; embora de ti me despeça
O teu no meu coração, onde habita a minha alma, habitará.
É como eu agora, mas se eu morrer, será mais,
Quando formos ambos sombras,do que era antes.
Quando eu voltar gasto das intempéries, as mãos
Talvez rasgadas pelos remos rudes, ou curtidas dos raios do Sol
A minha face e o peito de silício, e a cabeça semeada
Com os eczemas dos cuidados das tempestades súbitas,
O corpo num saco de ossos, quebrado por dentro,
E as manchas azuis da pólvora espalhadas na pele;
Se rivais loucos te acusarem de ter amado um homem
Tão imundo e rude como, ah! então poderei parecer,
Isto deverá mostrar o que eu era, e tu deverás dizer,
Será que as dores dele me atingem? Arruínam o meu valor?
Ou atingem-lhe a mente pensante, e ele agora
Amará menos o que tanto gostava de ver?
Aquilo que foi nele belo e delicado,
Era apenas o leite no estado infantil do amor
O alimentava; o qual agora cresceu forte o bastante
Para se alimentar do que, a gostos desusados, parece rude.



John Donne in Elegias Amorosas. Edição Bilingue. Trad. Helena Barbas, Assírio & Alvim, 1997

Elegia I - CIÚME

Mulher carinhosa, que verteu marido morto desejas
E de seus grandes ciúmes ainda te queixas.
Se inchado de veneno jazesse no seu último leito,
O corpo coberto por uma crosta cauterizada,
Aspirando o ar, tão rouco e rápido, como pode
Cravejar o mais ágil músico;
Com repugnante vomitado, pronto a expelir
A alma para fora de um Inferno, adentro de novo,
Feito surdo pelos urros uivantes dos parentes pobres
A implorar, com poucas e falsas lágrimas, grandes legados,
Não chorarias, mas alegre e prazenteira estarias
Como um escravo, que amanhã fosse libertado.
Porém tu choras, quando o vês engolir avidamente
A sua própria morte, o ciúme que envenena o coração.
Oh, agradece-lhe muito, ele é bem-educado,
Pois suspeitando, amavelmente nos avisou
Que não devemos, como usávamos, troçar abertamente
Da sua deformidade com enigmas de escárnio;
Nem estando juntos à sua mesa sentados,
Com palavras, toques, ou olhares de viés, adulterar;
Nem quando ele, inchado e satisfeito pela comezaina
Se senta, e ressona, enjaulando-se na cadeira de verga,
Deveremos nós outra vez usurpar-lhe a cama,
Nem beijarmo-nos e brincar na casa dele, como dantes.
Agora vejo grandes perigos; porque aquele é
O seu reino, o seu castelo, a sua diocese.
Mas - como os homens invejosos que insultariam
O seu Príncipe, ou lhe cunhariam o ouro, para outro país
A si próprios se exilam, e aí o fazem - ,
Se brincarmos noutra casa, que teremos a temer?
Ali zombaremos dos comportamentos caseiros,
Das suas intrigas cegas, e espiões a soldo,
Como o fazem os habitantes da margem direita do Tamisa
Ao Mayor de Londres, ou os alemães ao orgulho do Papa.


John Donne in Elegias Amorosas. Edição Bilingue. Trad. Helena Barbas, Assírio & Alvim, 1997

quinta-feira, 4 de março de 2010

Os murmúrios da floresta

Enfim, um belo dia Romão viu-se casado. Trouxe a sua jovem esposa para a cabana da floresta. Nos primeiros dias não fez senão ralhar com ela, atirando-lhe ao rosto as vergastadas que tinha apanhado por sua causa.
-Não vale a pena martirizarem assim por ti um bom cristão.
Quando voltava da floresta, começava a querer expulsá-la de casa.
-Vai-te. Não quero mulheres em minha casa. Não gosto de dormir com mulheres, porque cheiram mal.
Dizia ele isto.
Mas, depois, foi-se acostumando a pouco e pouco. Oxana arrumava-lhe a casa, varria, lavava, tudo estava muito limpo e arranjado. Romão sentia-se contente e já se ria. Não só fez as pazes, como começou a gostar dela.
Palavra de honra, até ele mesmo se admirava!
Devo dar graças ao senhor, que me ensinou a ser razoável - dizia ele depois. Meu Deus, que parvo que eu era! Apanhar tantas vergastadas, para quê?! Agora vejo bem que fazia mal, recusando-me a casar. Estou muito contente com Oxana, mesmo muito contente.
Passaram-se as semanas e os meses. Um dia, reparei que Oxana se deitou num banco e começou a gemer. Durante a noite piorou. No dia seguinte, ouvi, com grande surpresa minha, o choro de uma criança.
«Toma! Há um menino cá em casa, disse eu para comigo. E não me enganava.
O menino não viveu muito tempo: apenas até à noite. Quando anoiteceu, já se não ouvia. Oxana pôs-se a chorar. Romão disse-lhe:
-Pronto, acabou-se. Já não temos menino. Não vale a pena chamar o pope; nós próprios o enterraremos debaixo de um pinheiro.
Romão atreveu-se a dizer isto. E não só o disse, como o fez: - abriu um buraco e enterrou o menino. Vês aquele velho tronco, acolá? São os restos de um pinheiro fulminado por um raio. Foi ali precisamente que Romão enterrou o menino. Ouve o que te vou dizer, meu rapaz: quando o sol se põe e a primeira estrela aparece no céu, um passarinho voa por cima desse sítio, soltando gritos de aflição. O coração despedaça-se-me ao ouvi-lo. O passarinho é a alma do menino que foi enterrado sem os Sacramentos, e suplica que lhe ponham uma cruz. Disseram-me que só um sábio que conheça os livros santos poderá salvar essa alma penada.
Oxana esteve muito tempo doente. Logo que melhorou um bocado, começou a passear horas inteiras sobre a campa do filho. O que ela chorava, meu Deus! Os seus lamentos ouviam-se em toda a floresta. A pobre não se podia consolar.
A Romão era-lhe indiferente a morte da criança; mas tinha dó de Oxana.
Ao vê-la chorar, dizia:
-Cala-te, minha estúpida. Não há de que chorar. Aquele menino morreu; mas pode ser que tenhamos outros, e até talvez melhores do que ele. Porque pode ser que o menino morte não fosse meu...Não sei nada, mas as pessoas murmuram...E o novo com certeza que será meu.

Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp. 104/105

terça-feira, 2 de março de 2010

BORGES E EU

É ao outro, a Borges, que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, a olhar o arco de um alpendre e o guarda-vento; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num grupo de professores ou num dicionário biográfico. Gostos dos relógios de areia, dos mapas, da tipografia do século XVIII, do sabor do café e da prosa de Stevenson; o outro compartilha dessas preferências, mas de um modo vaidoso, que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que as nossas relações são hostis; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa tecer a sua literatura e essa literatura justifica-me. Nada me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar,talvez porque o que é bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, mas sim da linguagem ou da tradição. Além do mais, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante meu poderá sobreviver no outro. A pouco e pouco vou cedendo-lhe tudo, embora não desconheça o seu perverso costume de falsear e de magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra quer eternamente ser pedra e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros que em muitos outros ou que no laborioso zangarreio de uma viola. Há anos procurei libertar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idealizar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e perco tudo e tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.

Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.99

Nirvana: Paper Cuts

O murmúrio da floresta tornou-se mais forte. O velho levantou a cabeça e escutou.
-O furacão aproxima-se, diz ele. Conheço-o bem. Quando ele começa a rosnar, a puxar pelos pinheiros, a arrancá-los da terra, é uma coisa que faz calafrios. É o demónio da floresta que se enfurece - acrescentou ele, mais baixo.
-Como é que o sabes, avô?
-Ora essa, sei-o muito bem! Compreendo a linguagem das árvores. Vês tu? As árvores também têm medo. O álamo alpino, por exemplo, essa árvore maldita, está sempre a gemer. Mesmo quando não há vento, treme. O pinheiro também. Quando está bom tempo, canta docemente; mas logo que o vento começa a soprar, põe-se a gemer de angústia. Escuta. Eu vejo mal, mas tenho bom ouvido. Agora é a azinheira que começa a queixar-se. O demónio da floresta ataca as azinheiras. É sempre assim antes do furacão.


Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.98

Alentejo: entardecer invernal


- Bons dias, avô. Não está ninguém em casa?
- Eh! - e o velho fez um gesto negativo com a cabeça. Nem Zakar nem Máximo cá estão. Motria também partiu para a floresta, em busca da vaca. A vaca, provavelmente, extraviou-se. Talvez tenha sido devorada pelos ursos...Não, não está cá ninguém.
-Não faz mal, esperarei; e, enquanto espero, faço-lhe companhia.
-Como queiras.
Enquanto prendo o cavalo a uma azinheira, o velho olha-me com os seus olhos débeis e apagados. É muito, muito velho. Não vê quase nada, e as suas mãos são trémulas.
-Quem és tu, meu rapaz? -pergunta-me ele, depois de eu me ter sentado ao seu lado.
De cada vez que apareço faz idêntica pergunta.
-Ah! Agora caio em mim. É verdade, já me recordo, diz ele, contente, enquanto vai consertando uma velha bota rota - A minha velha cabeça já não conserva memória de nada. É como um crivo: dos que morreram há muito, recordo-me bem, mesmo muito bem; mas da gente nova esqueço-me sempre. Já se vê, como vivo neste mundo há tanto tempo...
-Vive nele assim há tanto tempo?
-Vamos, vamos, que há bastante. Já cá andava quando os franceses aqui vieram para batalhar com o nosso imperador.
-Então já tem visto muito, e já pode contar muita coisa.
O velho olha para mim com estranheza.
-Eu? Que tenho eu visto? Apenas a floresta, sempre rumorosa, seja de noite ou de dia, seja de inverno ou de verão. Tenho passado aqui toda a minha vida com estas árvores, e não tenho dado conta disso. Estou quase à hora da morte; mas às vezes, quando começo a pensar, pergunto a mim mesmo se vivi verdadeiramente ou não. Talvez nunca tenha vivido...


Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.96/97

segunda-feira, 1 de março de 2010

«Por agora, pode voltar para o seu castelo, que é como quem diz: para o silêncio.»




Tasin in Nas Garras da Morte. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.77

Memórias De Um Louco

Levai-me para longe deste mundo! Avante Avante! Que nada se veja...
Já não vejo diante de mim o céu formoso. Uma estrela brilha ao longe. Sob a lua, passam bosques com as suas alamedas umbrosas, debaixo de uma neblina azulada. Dum lado, o mar; do outro, a Itália...
Eis as cabanas russas. É a minha casa que se vê à distância? Não é a minha mãi que está à janela? Mãi, mãi! Salva o teu pobre filho. Derrama uma lágrima sobre a sua pobre cabeça doente...Tu vês como o martirizam? Aperta ao teu peito o pobre órfão. Não há no mundo lugar para ele; expulsam-no de toda a parte. _ Mamã, mamã! Tem piedade do teu pobre filho doente...
Sabem que o Bey da Argélia tem uma verruga por baixo do nariz?...


Nikolai Gogol in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.50
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