terça-feira, 21 de junho de 2011

(como eu compreendo o pobre Piskariov...)


   «Oh, era demais!, já se tornava impossível de suportar. Piskariov precipitou-se para fora, de cabeça e sentidos vazios. Turvou-se-lhe a mente: sem atentar no caminho, sem tino, sem ver, sem ouvir, vagueou todo o dia. Ninguém sabe se dormiu ou não dormiu em qualquer sítio; só no dia seguinte o instinto cego o levou ao seu apartamento, pálido, com um aspecto medonho, o cabelo desgranhado, sinais de loucura no rosto. Fechou-se no quarto, sem deixar entrar ninguém, sem pedir nada. Quatro dias se passaram e o quarto fechado nenhuma vez se abriu; ao cabo de uma semana, o quarto continuava fechado. Chamaram por ele à porta, mas não houve resposta; por fim, arrombaram-na e encontraram o seu cadáver com a garganta cortada. A lâmina ensaguentada estava no chão. Pelos braços convulsamente abertos e pela cara terrivelmente desfigurada podia concluir-se que a sua mão fora certeira e que sofreu ainda muito antes de a sua alma pecadora lhe abandonar o corp
    Assim pareceu, vítima de louca paixão, o pobre Piskariov, quedo, tímido, modesto, ingénuo como um menino, que transportava em si a chispa do talento que talvez, com o correr do tempo, viesse a atear um fogo grande e brilhante. Ninguém chorou a sua morte; ninguém estava ao lado do seu corpo inanimado para além da figura vulgar do chefe de esquadra do bairro e do indiferente médico municipal. Levaram o caixão despercebidamente, sem ao menos as cerimónias religiosas, para o cemitério de Okhta; atrás do féretro apenas um guarda-soldado chorava, e mesmo esse porque bebera uma garrafa de vodca a mais.»


Nikolai Gógol. Contos de São Petersburgo. Avenida Névski. Tradução do russo de Nina Guerra e Filipe Guerra. Biblioteca editores Independentes. Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p. 50/1

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