quarta-feira, 22 de junho de 2011

O Demónio

    De súbito, como um firme e solitário trote, duplamente sujo numa alta nuvem de pó, pela esquina do Trasmuro, aparece o burro. Um momento depois, ofegantes, puxando as calças andrajosas caídas, que lhes deixam ao léu as barrigas escuras, os garotos atiram-lhe paus e pedras...
    É preto, grande, velho, ossudo - outro arcipestre -, tanto, que parece que a pele sem pêlo em todo o lado se vai esburacar. Estaca e, mostrando uns dentes amarelos como grandes favas, zurra ferozmente para o ar com uma energia que não se enquadra com a sua desgraciosa velhice...É um burro perdido? Não o conheces, Platero? Que quererá? De quem virá ele a fugir, com aquele trote desigual e violento?
    Ao vê-lo, Platero faz um corno, primeiro, com as duas orelhas numa única ponta; depois, deixa uma em pé e a outra caída; e vem para o pé de mim, e quer esconder-se na valeta, e fugir - tudo ao mesmo tempo. O burro preto passa ao lado dele, dá-lhe um encontrão, puxa-lhe a albarda, cheira-o, zurra contra o muro do convento e vai-se embora, trotando, Transmuro abaixo...
    ...É, no calor, um momento estranho de arrepio - meu, de Platero? - em que as coisas parecem transtornadas, como se a sombra baixa de um pano negro diante do sol ocultasse, subitamente, a solidão deslumbrante do cotovelo da viela, onde o ar, subitamente quieto, asfixia...Pouco a pouco, a vida distante faz-nos voltar ao real. Ouve-se, lá em cima, a vozearia incerta da praça do peixe, onde os vendedores que acabam de chegar da Ribeira apregoam as suas azevias, os seus salmonentes, as suas bogas, o seu goraz, os seus caranguejos; o dobrar do sino, que anuncia o sermão da manhã; a gaia do amolador...
   Platero treme ainda, de vez em quando, olhando-me, amedrontado, na quietude muda em que ficámos os dois, sem saber porquê...
   - Platero, a mim parece-me que esse burro não é um burro...
   E Platero, mudo, treme de novo todo ele num só tremor, brandamente ruidoso, e olha, desconfiado, para a valeta, carrancudo e cabisbaixo.



Juan Ramón Jiménez. Platero E Eu. Tradução de Luís Lima Barreto. Edições Cotovia, Lisboa, 2007, p. 48/9

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