domingo, 11 de setembro de 2011

Terra Di Lavoro

Já está próxima a Terra Di Lavoro,
algumas manadas de búfalas, alguns
amontoados de casas entre tomateiros,

heras e míseras estacas.
De vez em quando, um riacho, rasando
o solo, surge entre os ramos

dos ulmeiros carregados de vides, negro
como um esgoto. Dentro deste comboio
que segue a sua marcha, meio vazio, o gelo

outonal cobre a madeira triste,
as roupas molhadas: se lá fora
é o paraíso, aqui é o reino

dos mortos, passados de dor
em dor - sem suspeitarem de nada.
Aqui estão eles, nos bancos, nos corredores,

de queixo enterrado no peito,
costas apoiadas ao espaldar,
abocanhando um pedaço de pão

com unto, mastigando mal,
míseros e escuros como cães
devorando um naco roubado: e

se os olhares nos olhos, se lhes olhares
para as mãos, sobe-lhes à face um piedoso rubor,
em que inimiga se lhes descobre a alma.

Mas mesmo quem não come ou as suas histórias
não conta ao vizinho atento,
se o olhares, olha-te com o coração

nos olhos, aterrado, como se dissesse
que nada fez de mal,
que é inocente.

Uma mulher, de Fondi ou de Aversa, embala
uma criança adormecida num saco
de pele de cordeiro, e entretém-na

- se ela acorda do seu sono
dizendo palavras novas como o mundo -
com palavras tão cansadas como o mundo.

Se olhares para ela, não se mexe,
como animal que finge que está morto;
encolhe-se nas suas pobres

roupas e, olhando para o vazio, escuta
a voz que a cada instante lhe recorda
a pobreza como se fosse culpa sua.

Depois, recomeçando a embalar, cega, surda,
sem sequer reparar, suspira.
Junto da janela, está um jovem

de um rosto escuro como turfa,
envolto num mudo cheiro a redil,
hostil, como se não ousasse abrir

a porta, incomodar o vizinho.
Olha fixamente para a montanha, para o céu,
de mãos nos bolsos, bóina de malandro

sobre os olhos: não vê o forasteiro,
não vê nada, de gola levantada
pelo frio, ou por suspeito mistério

de delinquente, de cão abandonado.
A humidade reaviva os velhos
cheiros da madeira, untada e fumada,

misturando-os aos novos, de bordéis
cheios de fresca forragem humana.
E dos campos, agora roxos,

vem uma luz que revela almas,
não corpos, ao olhar que mais cru
do que a luz lhes descobre a fome,

a servidão, a solidão.
Almas que enchem o mundo,
como imagens fiéis e nuas,

da sua história, embora enraizadas
numa história que já não nos pertence.
Com uma vida de outros séculos, estão

vivos neste: e mostram-se no mundo
a quem do mundo tem conhecimento, rebanho
de quem nada mais conhece que miséria.

O ódio servil e a servil alegria foram
desde sempre a sua única lei:
mas nos seus olhos já podia ler-se

um sinal de diferente fome - escura
como a do pão e, como ela,
necessária. Uma sombra pura

que já começava a ter nome
de esperança: e o Sul,
como que reconquistado para o homem,

via a luz tímida do resgate
sobre os seus rebanhos resignados
de vivos. Mas para estas almas marcadas

pelo crepúsculo, para este arraial
de passageiros tímidos,
qualquer luz interior, qualquer acto

de consciência, parecem de repente coisa de ontem.
Hoje, para esta mulher que embala
o filho, para estes camponeses

negros que nada sabem, o inimigo
é quem morre para que se salve
noutras mães, noutros filhos,

a sua liberdade. É o seu inimigo
quem morre para que arda em outros servosm
outros camponeses, a sua sede,

ainda que bastarda, de justiça.
É seu inimigo quem rasga a bandeira
já vermelha de assassínios

e é seu unimigo quem, fiel,
a defende dos brancos assassinos.
É seu inimigo o patrão que espera

a sua rendição, e o camarada que deseja
que lutem numa fé que é já negação
da fé. É seu inimigo quem dá

graças a Deus pela reacção
do velho povo, e é seu inimigo
quem perdoa o sangue em nome

do novo povo. Assim, num dia de sangue,
se devolve o mundo
a um tempo que parecia já passado:

a luz que desaba sobre estas almas
é ainda a luz do velho sul,
a alma desta terra é a lama antiga.

Se medes no teu íntimo a desilusão no mundo,
sentes que ela não conduz
a uma nova aridez, mas a uma velha paixão.

E perdes-te nesta luz que, de repente,
roça, com a chuva, por torrões
de salva vermelha, casas imundas.

Perdes-te no velho paraíso
que aqui fora, nos relevos de lava,
dá rosto celeste, embora humano,

ao horizonte em que Nápoles
se esfuma na baba cinzenta,
aos temporais do sul que o sereno invadem,

um sobre os montes do Lácio, já remotos,
outro sobre esta terra entregue
às hortas sujas, aos pântanos,

às aldeias do tamanho de cidades.
A chuva e o sol misturam-se
numa alegria que talvez esteja guardada

-como lasca da outra história,
que já não nos pertence - no fundo do coração
destes pobres viajantes:

vivos, apenas vivos, no calor
que torna a vida maior que a história.
Tu pedes-me no paraíso interior

e mesmo a tua piedade é sua inimiga.




Pier Paolo Pasolini. Poemas. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Assírio & Alvim, Lisboa, 2005., pgs 119 - 129

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