sexta-feira, 4 de novembro de 2011

TORRES
(Interrompendo)

  A primeira coisa que vai já registar ma sua memória, e definitavmente, é que já não preciso da sua pena para nada. E é só porque eu hoje me sinto benevolente, que não lhe faço engolir doutra maneira a palavrinha. Ande lá, e não repita. (Pausa.) A segunda coisa é que não me deu nenhuma novidade quando me disse que sou um homem. Devo dizer-lhe, muito em confidência, que tenho reparado. Sou-o desde que nasci, mas, felizmente, creio que não me contentei com os sinais exteriores: dei um jeito para ser um bocadito mais homem quando comecei a pensar.

VALADARES

O assunto é outro, com menos literatura. Não se ponha a divagar.

TORRES

Tem toda a razão, o assunto é outro. Se sou redactor da província, se escolhi ser redactor da província, se Vocês todos ficaram felicíssimos porque eu decidi ser redactor da província, a razão é não querer eu escrever uma linha só que seja que, directamente ou indirectamente, faça o joguinho do regime, pois é para isso que existe este jornal...

VALADARES
(Ironia fácil)

Que lhe paga...

TORRES

Mais uma vez tem razão. Parabéns. Mas acontece que o único dinheiro que recebo é o que no fim do mês vou buscar lá abaixo, à tesouraria. Nem mais um tostão. Nem tenho cheques de embaixada, nem gratificações especiais e secretas de ministérios, nem sobrescritos misteriosos, nem outras ajudas de custo que não sejam as fixadas no regulamento do jornal, etc., etc., etc. E não desejo outra vida.

VALADARES

Você está a fazer insinuações?

TORRES

Vejo que não me compreendeu. Estou a fazer afirmações.

VALADARES

Se é a mim que pretende atingir...

TORRES

Sentiu-se atingido? Se se sentiu atingido, teme a afirmação como tendo que ver consigo. De qualquer maneira, não faltará  por aí quem enfie esta carapuça e outras que eu não disse. (Mudando de tom.) Ouça, Valadares, esta conversa é estúpida, e eu embirro com conversas estúpidas. Nem eu lhe estou a dar novidades, nem Você a mim. Diga aonde quer chegar, e acabemos com o paleio...




José Saramago. A Noite. Editorial Caminho. Colecção ''O Campo da Palavra''. Lisboa, 1979., p. 48/9

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