quarta-feira, 22 de abril de 2015

Quando a mãe se abeirou da cova
o corpo inerte pediu-lhe colo
numa língua que só as mães podem escutar
e a mulher mergulhou no sangue do seu sangue
coalhado
e que ainda assim continua a correr-lhes nas veias
como um membro amputado que mantém a presença num formigueiro inexistente
e no momento em que tornaram a cortar-lhe o cordão umbilical
não se ouviu o grito de choro da cria
apenas os guinchos que explodiam da garganta dilacerada da mãe
o horror
mantendo a boca aberta sem emitir som
cobriu com o seu corpo vivo o outro que jazia
deixando escorrer a baba que lhe escapava sem intenção
o dique descontrolado de fluídos
nessa barbárie de máquinas aplicada ao corpo
o corpo que obedecia a ordens continuando a manter funções
quando deveria ser esmagado

a mãe viu o pedaço de vidro ao lado do morto
um destroço da explosão deixado em divina correspondência
pegou na lâmina e cravou-a no pescoço
esguichou-se por inteiro até ao esvaziamento
a poça encarnada abarcou a família
e toda a descendência.
Na guerra só há razão. A barbárie alimenta-se de crânios.

Cláudia Lucas Chéu. in 70 Poemas Para Adorno, Vários Autores, Nova Delphi Editora, Funchal, 2015.
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