quarta-feira, 30 de dezembro de 2015


« - Ouvir-me-ás sempre em cada uma das tuas fugas.
-Nunca fugi. Avanço por toda a parte abandonando tudo aquilo que amei e o meu coração está dilacerado.
- Até quando?
-Até atingir o cume. Lá repousarei.
-Não há cume. Há apenas altitudes. Não há repouso. Há apenas lutas. Porque arregalas os olhos de espanto? Não descobriste ainda? Julgas que eu sou a voz de Deus? Não, sou a tua própria voz. Viajo contigo, não te deixo. O céu me livre de te abandonar! Um dia em que te encolerizaste deste-me um nome e eu conservo-o porque me agrada: a minha companheira, é a Víbora.
    Calou-se. Tinha-a reconhecido e o meu coração endureceu. Porquê temê-la? Viajámos sempre juntos. Comemos e bebemos os dois nas mesas do exílio, sofremos juntos, gozámos ambos as cidades, as mulheres, as ideias. E quando carregados de despojos, cobertos de feridas regressamos à nossa confortável cela, esta víbora aferra-se em silêncio na minha cabeça, enrosca-se no meu cérebro, esparsa-se pelo meu crânio porque é lá o seu antro, e, juntos, evocamos, sem falar, tudo o que vimos, e ardemos em desejos de ver tudo o que nos falta ver.
    Sentimo-nos felizes por verificar que o mundo, visível ou invisível, é um mistério profundo, impenetrável. Profundo, incompreensível, para lá da inteligência, do desejo, da certeza. Discutimos, eu e a minha companheira, a Víbora, e rimo-nos por sermos tão cruéis, tão ternos, tão insaciáveis, rimos desta insaciabilidade e pouco nos importa saber que uma noite acabaremos por jantar um punhado de terra e ficaremos saciados.
    Que alegria, ó alma do homem, ó companheira Víbora, viver, amar a terra, olhar a morte e não ter medo!»



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 262

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