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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

«O homem não é senão um navio pesado, um pássaro
pesado, sobre o abismo.»



Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 135
*


      Por felicidade, contudo, o que é o ser? - Não há senão maneiras de ser, sucessivas. Há tantas quanto objectos. Tantas quantos os batimentos de pálpebras.
      Tanto quanto, tornando-se nosso regime, um objecto nos concerne, também o nosso olhar o cerca, o discerne. Trata-se, graças aos deuses, de uma «discrição» recíproca; e o artista acerta logo no alvo.
      Sim, só o artista, então, sabe como fazer.
      Deixa do olhar, atira ao alvo.
      O objecto, é certo, acusa o golpe.
      A verdade afasta-se em voo, indemne.
      A metamorfose aconteceu.
    


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 133

domingo, 19 de dezembro de 2010

O SOL FLOR FASTIGADA

TODOS OS DIAS AO CIMO DO MUNDO
EIS QUE SOBE UMA FLOR FASTIGADA.
O SEU ESPLENDOR APAGA O SEU CAULE
QUE VAI TREPANDO POR ENTRE OS DOIS OLHOS
DA DEMASIADA ESTREITA NATUREZA
P'RA LHE DIVIDIR SEPARAR A FRONTE.
A RAIZ 'STA EM NOSSOS CORAÇÕES.

A raiz do que nos deslumbra está nos nossos corações.



Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 109
«A sombra tem sempre uma forma, a do corpo que a deita.»


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 99

O sol colocado em abismo

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Assim, mergulhado na desordem absurda e de mau gosto do mundo, no caos inaudito das noites, o homem pelo menos conta os sóis.


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 95

O sol colocado em abismo

«O sol anima um mundo que primeiro consagrou à morte: é pois apenas a animação da febre ou da agonia.»


Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 87

sábado, 18 de dezembro de 2010

A família do sábio

Ao ruído de uma nascente de noite, sob uma campânula de folhas, com uma mesma árvore contra o tronco, calmo e frio - Pai - assim, num quarto frio, um dia a tua presença nos foi.

    Tu estavas frio, sob um único lençol, velado, uma janela aberta.

   Que equilíbrio nós quatro juntos, sem horas sentados, tu próprio ainda melhor em repouso, estendido, morto.

   Que pura saúde a do verde-frondoso, do solo, e do líquido.

   Igual em nós corria uma água em silêncio do pescoço sem cessar para o dorso até aos membros sob a erva. Pela janela surda, um sopro, derramado do fundo obscuro do céu, secava nas têmporas das mulheres o suor do anoitecer.

 E que também uma estrela, parecida com o olho do filho,
se avive,
 Sem o dizeres. daí tiravas teu gozo, Pai!



Francis Ponge.  Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 57
«(...) quero reaproximar-vos da substância e afastar-vos da qualidade. Quero fazer com que vos amem por vós mesmos mais do que pela vossa significação.»




Francis Ponge.  Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 53

O ciclo das estações

   Cansadas de se terem contraído todo o inverno as árvores de repente gabam-se de ser enganadas: soltam as suas palavras, uma onda, um vómito de verde. Tentam alcançar uma folheação completa de palavras. Tanto pior! As coisas arranjar-se-ão como puderem! E, na realidade, arranjam-se! Nenhuma liberdade na folheação...As árvores lançam, pelo menos é o que pensam, não importa que palavras, lançam caules para neles suspenderem mais palavras: os nossos troncos, pensam elas, aqui estão tudo para assumirem. Esforçam-se por se esconderem, por se confundirem umas nas outras. Julgam poder dizer tudo, cobrir inteiramente o mundo com palavras variadas: mas não dizem senão «as árvores». Incapazes até de reter os pássaros que delas voltam a partir, embora se alegrassem por terem produzido tão estranhas flores. Sempre a mesma folha, o mesmo modo de desdobramento, e o mesmo limite, sempre folhas simétricas umas às outras, simetricamente suspensas! Tenta mais uma folha! - A mesma! Mais outra! A mesma! Em suma, nada poderia pará-las senão de súbito esta observação: «Não se sai das árvores por meios de árvore». Um novo cansaço, e uma nova mudança moral. «Deixemos tudo isto amarelecer, e cair. Que venha o taciturno estado, o despojamento, o Outono.


Francis Ponge.  Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 39

quarta-feira, 19 de maio de 2010

4 de Setembro de 1940

No pinheiro são abolidos s suas expansões sucessivas (no pinheiro dos bosques, especialmente) que felizmente corrige, libertando-se da maldição habitualmente sofrida pelos vegetais: ter que viver eternamente com o peso de todos os gestos desde a infância. A essa árvore mais do que a qualquer outra é permitido separar-se dos seus antigos desenvolvimentos. É-lhe permitido esquecer. É verdade que os desenvolvimentos seguintes se assemelham muito aos antigos, caducos. Mas não importa. O prazer está em abolir e recomeçar. E depois é sempre mais acima que isso se passa. Parece que se ganhou qualquer coisa.


Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 49

3 de Setembro de 1940

Se os indivíduos da orla (orla ou extremidade: termos a verificar no dicionário) ocultam bastante bem o interior dos olhares do exterior, ocultam muito mal o exterior dos olhares do interior. Funcionam como vitrais, ou melhor (porque não são translúcidos) como um vitral de tecido, ou de pedra, ou de madeira esculpida. Quando o bosque é suficientemente vasto ou espesso, do seu interior não se apercebe a faixa lateral de céu, é preciso avançar em direcção à orla, até ao ponto em que a absoluta espessura do bosque se desvanece. Seria sublime consegui-lo dentro de uma catedral: uma floresta de colunas de tal maneira que se chegaria progressivamente à obscuridade total (cripta).
E no entanto é mesmo mais ou menos isso que acontece no bosque, apesar de não haver afinal nenhum muro, de tal forma que o monumento respira por todos os poros em plena natureza, melhor que um pulmão, como brônquios.
Poderia dizer-se mesmo que esse deveria ser o critério de qualquer acabamento, a condição desse tipo de arquitectura: o ponto onde a obscuridade total se realizaria, tendo em conta por exemplo que entre cada coluna deve ser deixado um espaço de tanto, que permita facilmente um passeio a , etc., etc.




Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., pp.46/7

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Pinhal

Fábrica alpina de escovas rodeada por espelhos
De cabos de madeira púrpura com frondosos pêlos verdes
Na tua penumbra quente manchada de sol
Veio pentear-se Vénus ao sair da banheira
Marinha ou lacustre fumegante na parte inferior...
Daí a espessura no solo elástico e vermelho
Dos ganchos de cabelo odoríferos
Para ali sacudidos por tantos cimos negligentes
-E o meu prazer também de aí saborear o sono


Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 33

domingo, 9 de maio de 2010

Em Agosto: É, totalmente rodeada por espelhos, uma praça de ganchos de cabelos odoríferos, por vezes soerguidos pela curiosidade doentia e prudente dos cogumelos; uma fábrica de escovas de longos cabos de madeira púrpura esculpidos, com pêlos verdes, escolhida pela ruiva nobre e selvagem que sai da banheira lacustre ou marinha fumegante na parte inferior.


Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 29
«Viver rodeado por outros, abriga o pinheiro a libertar-se de todos os seus desenvolvimentos laterais, dos primeiros rebentos: Ponge elabora então, antropomorficamente, e em termos de obrigatoriedade social, (o que a tornaria perfeita), uma utópica felicidade: «a permissão de esquecer...o peso de todos os seus gestos desde a infância».


Nota introdutória de Leonor Nazaré ao livro:


Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 9
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