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terça-feira, 2 de março de 2021

 

yorgos seferis / siroco 7 levante


                   A.D.I. Antòníu


Coisas que mudaram a forma do nosso rosto
mais fundo que o pensamento e mais
nossas tal como o sangue e mais
afundaram no brasido do meio-dia
por detrás dos mastros.

Entre as cadeias e as ordens
ninguém se lembra.

Os outros dias as outras noites
corpos, dor e prazer
a amargura da nudez humana despedaçada
mais baixa que as plantas do pimento por caminhos de poeira
com tantas fascinações e tantos símbolos
no último ramo;
na sombra do grande barco
sombra a memória.

As mãos que nos tocaram não nos pertencem, apenas
mais fundo, quando as rosas escurecem,
um ritmo na sombra do monte, grilos
humedece o nosso silêncio dentro da noite
procurando o sono do mar
deslizando para o sono do mar.

Na sombra do grande barco
quando rangeu o cabrestante
deixei o afecto aos agiotas.


Pélion, 19 de Agosto de 1935




yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O último dia

Estava o dia nublado. Ninguém se resolvia
soprava um vento ligeiro: «Não é o grego é o
siroco» disse alguém.
Alguns ciprestes esguios cravados na encosta e o
mar
cinzento com lagoas luminosas, mais além.
Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar.
«Não é o grego é o siroco» a única resolução que
se ouviu.
Todavia sabíamos que na alba seguinte não nos restaria
mais nada, nem a mulher bebendo ao nosso lado o sono
nem a memória de que fomos homens alguma vez,
mais nada na alba seguinte.

«Este vento traz à mente a primavera» dizia a amiga
caminhando a meu lado olhando para longe «a primavera
que de repente caiu no inverno perto do mar fechado.
Tão inesperadamente. Passaram tantos anos. Como vamos
morrer?»

Uma marcha fúnebre vagueava por entre a chuva miudinha.
Como morre um homem? Estranho ninguém refletiu
nisso.
E os que pensaram nisso era como memória de crónicas
velhas
da época dos cruzados ou da - em Salamina - batalha
naval.
Todavia a morte é algo que é feito; como morre
um homem?
Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte,
que não pertence a nenhum outro
e este jogo é a vida.
Baixava a luz sobre o dia nublado, ninguém se
resolvia.
Na alba seguinte não nos restaria nada; tudo entregue;
nem sequer as nossas mãos;
e as nossas mulheres trabalhando para outros nos fontanários e
os nossos filhos
nas pedreiras.
A minha amiga cantava caminhando a meu lado
uma canção amputada:
«Na primavera, no verão, escravos...»
Lembrávamo-nos de mestres anciãos que nos deixaram
órfãos.
Uma casal passou a conversar:
«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa
vamos para casa acender a luz.»




Yorgos Seferis, "Poemas escolhidos" (de Diário de Bordo I
tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis 
© Relógio d'água 

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

« A metamorfose procurámo-la na nossa juventude »


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p. 105

« existem acaso
aqui onde se encontra a passagem da chuva do vento
e do desgaste
existem o movimento do rosto traçado do carinho
daqueles que diminuíram tão estranhamente dentro da nossa vida
desses que ficaram sombras de vagas e reflexões com
a imensidade do mar
ou porventura não nada fica a não ser apenas o peso
a saudade do peso duma existência viva
aí onde agora sem substância ficamos vergando
como hastes do salgueiro abominável amontoadas dentro
da duração do desespero
enquanto lenta a amarela torrente arrasta para baixo dentro da lama
juncaria arrancada
imagem de rosto que se tornou mármore na decisão de uma
amargura para sempre.
O poeta um vazio.»


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p. 101

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Micenas

Dá-me as tuas mãos, dá-me as tuas mãos,
dá-me as tuas mãos.
 
Vi dentro da noite
o cimo agudo do monte
vi além a planície inundada
com a luz de uma lua por aparecer
vi, ao voltar a cabeça
as pedras negras contraídas
e a minha vida tensa como corda
princípio e fim
o último momento;
as minhas mãos.
 
Afunda-se quem levanta as grandes pedras;
estas pedras levantei-as enquanto suportei
estas pedras amei-as enquanto suportei
estas pedras, o meu destino.
Ferido pelo meu solo
tiranizado pela minha túnica
condenado pelos meus próprios deuses,
estas pedras.
 
Sei que não sabem, porém eu
que segui tantas vezes
o caminho do assassino ao assassinado
do assassinado à paga
da paga ao outro assassínio,
a púrpura inesgotável
aquela tarde do regresso
quando as Solenes começaram a silvar
na erva escassa -
vi as serpentes em cruz com as víboras
entretecidas sobre a linguagem má
o nosso destino.
 
Vozes de pedra e do sono
mais fundas aqui onde o mundo escurece,
memória da fadiga enraizada no ritmo
que bateu na terra com pés
esquecidos.
Corpos afundados nos alicerces
do outro tempo, nus. Olhos
fixos fixos, num sinal
que por mais que queiras não distingues;
a alma
que luta por tornar-se tua alma.
 
Nem já sequer o silêncio é teu
aqui onde as mós pararam.
 
Outubro 1935
 
 
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.49/51

XV

 
Quid campo de plátanos opacissimus?
 
O sono envolveu-te, como uma árvore, com folhas verdes,
respiravas, como uma árvore, na luz tranquila,
olhei para a forma do teu rosto dentro da fonte diáfana;
pálpebras fechadas e os cílios riscavam a água.
Os meus dedos na erva macia, encontraram os teus
dedos
prendi o teu pulso um momento
e senti noutro lugar a dor do teu coração.
 
Debaixo do plátano, perto da água, entre os loureiros
o sono deslocava-te e despedaçava-te
em redor de mim, perto de mim, sem poder tocar-te
inteira,
una com o teu silêncio;
vendo a tua sombra crescer e diminuir,
perder-se noutras sombras, dentro do ouro
mundo que te deixava e te prendia.
 
A vida que nos deram para viver, vivemo-la.
Tem dó dos que esperam com tanta paciência
perdidos entre os loureiros negros debaixo dos pesados
plátanos
e dos que falam sós por cisternas e por poços
se de afogam dentro dos círculos da voz.
 
Tem dó do companheiro que partilhou a nossa privação
e o suor
e afundou dentro do sol qual corvo além dos mármores,
sem esperança de disfrutar a nossa recompensa.
 
Dá-nos, fora o sono, a serenidade.
 
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.35/37

domingo, 21 de novembro de 2010

«Voltamos a embarcar com os nossos remos partidos.»
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.33

III

Lembra-te dos banhos em que foste afogado


Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos
que extenua os meus cotovelos e não sei onde
pousá-la.
Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho
a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se
de novo.

Vejo os olhos; nem abertos nem fechados
falo à boca que continuamente procura falar
seguro as maçãs do rosto que ultrapassam a pele.
Já não tenho força;

as minhas mãos perdem-se e aproximam-se de mim
mutiladas.


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.23

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Adolescente

Certo verão - eu tinha dezasseis anos - uma voz estrangeira
cantou em meus ouvidos.
Era, lembro-me bem, à beira-mar, entre os regos vermelhos, e a
carcaça de um barco abandonado na areia, tal um esqueleto.
Quis aproximar-me dessa voz, colando o ouvido na areia.
A voz desapareceu
Mas uma estrela cadente
Como se pela primeira vez eu visse uma estrela cadente e nos meus
lábios o sal da vaga.
Naquela noite, as raízes das árvores não voltaram mais.
Na manhã seguinte, uma viagem abriu suas folhas em mim e se
fechou como um livro de imagens.
Eu quis todas as noites ir à praia
Aprender primeiro a praia e partir depois para o largo.
No terceiro dia, amei uma jovem numa colina;
Ela morava numa casinha branca feito capela de montanha, tinha
a mãe velhinha à janela, óculos abaixados para o tricô, sem-
pre calada,
Um vaso de manjericão, um vaso de craveiros.
Chamava-se, parece, Vasso, Frosso ou Bílio.
Assim esqueci o mar.
Numa segunda-feira de outubro
Encontrei um jarro quebrado diante da casa branca
Vassi (para simplificar) estava de roupa negra, os cabelos desfei-
tos, os olhos vermelhos.
E como a interrogasse, disse-me:
''Ela morreu, o doutor disse que ela morreu porque não estran-
gulamos o galo negro nos alicerces...Onde encontrar um
galo negro por aqui...Só animais de casa, e a criação,
vendem toda já crescida no mercado...''
Eu não imaginava assim a tristeza e a morte.
Parti e voltei para o mar.
De noite, na ponte do São Nicolau,
Sonhei que uma oliveira muito velha chorava.



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 122/123

segunda-feira, 26 de julho de 2010

As fogueiras de São João

Nosso destino, chumbo derretido, não saberia mudar
Nada tem que se fazer,
Derramou-se o chumbo na água sob as estrelas apesar das foguei-
ras que queimam.

Se ficas nua diante o espelho à meia-noite, verás...
Verás no fundo do espelho passar um homem que, em teu destino,
Dominará teu corpo,
Na solidão e no silêncio, o homem
Da solidão e do silêncio
Apesar das fogueiras que queimam.

Na hora em que o dia acaba sem que o outro ainda comece,
Na hora em que o tempo se interrompe,
Aquele que desce então, de desde a origem dominava teu corpo
Deverás encontrar,
Deverás procurá-lo para que ao menos alguém o encontre quando
estejas morta.
São as crianças que acendem as fogueiras e gritam diante das chamas
na noite quente
(Houve acaso alguma fogueira que não a acendesse uma criança,
Eróstrato?)
E elas jogam sal nas chamas para que crepitem
(É estranho o olhar que súbito vos lançam as casas, funis de
homens, quando as percorre um reflexo)
Mas tu que conheceste o encanto da pedra sobre o rochedo batido
pelas vagas
No poente onde a calma desceu,
Tu ouviste, no fundo da tua carne, a voz humana da solidão e do
silêncio,
Quando extinguiram-se todas as fogueiras,
Nessa noite de São João,
E decifraste a cinza sob as estrelas.



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 117/118

domingo, 25 de julho de 2010

''Pôs-se a gritar muito alto para mostrar
que não estava morto.''

SOLOMOS, A mulher de Zante.


in Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 115

quarta-feira, 21 de julho de 2010

O Velho

Tantos rebanhos desfilaram, tantos pobres
E ricos cavaleiros - alguns,
Vindos de cidades distantes, haviam passado
A noite em cavas,
Acendido fogueiras contra os lobos. Vês
A cinza? Feridas redondas e negras, cicatrizadas.
Está coberto de cicatrizes, como a estrada.
Mais longe, no poço seco, jogavam
Os cães raivosos. Não tem olhos, está coberto
De cicatrizes, é sem peso: o vento sopra.
Nada distingue, tudo sabe,
Carcaça vazia de cigarra numa árvore oca.
Não tem olhos, nem mesmo mãos, conhece
A aurora e o crepúsculo, conhece as estrelas
O sangue delas não o alimenta, nem é sequer
Um morto, não é de raça alguma, não morreu,
Assim o esqueceremos, sem linhagem.
As unhas fatigadas de seus dedos
Traçam cruzes sobre lembranças corrompidas
Enquanto sopra o vento desordenado. Neva.
Vi a geada em volta dos rostos.

Vi os lábios húmidos, as lágrimas geladas
No canto dos olhos; vi a prega
Da dor junto às narinas e o esforço
Nas raízes da mão; vi o corpo encontrar seu fim.
Esta sombra não está só, pregada
A esta bengala que jamais se dobra,
E nem mesmo pode baixar, para estender-se.
O sono esmigalharia seu esqueleto
Entre as mãos das crianças que brincam.
Ordena como esses galhos mortos
Que se partem quando a noite cai e o vento
Desperta nos vales,
Ordena às sombras dos homens,
Não ao homem em sua sombra
Que ouve apenas as vozes baixas
Da terra e do mar, lá onde elas encontram
A voz do destino. Fica de pé,
Na margem, entre rodas de ossadas,
Entre montes de folhas mortas,
Gaiolinha vazia esperando
A hora do fogo.

Drenovo, fevereiro, 1937.

Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 113

Santorim

Inclina-te, se podes, sobre o mar, obscuro, esquecendo
O som de uma flauta sobre pés desnudos
Que percorreram teu sono na outra vida, a devorada.

Sobre tua última concha, escreve, se podes,
O dia, o nome, o lugar
E lança-a ao mar, que ela desapareça.

Encontramo-nos desnudos sobre a pedra-pomes
Olhando as ilhas vermelhas mergulharem
No seu sono, em nosso sono.
Encontramo-nos desnudos, aqui, inclinando
A balança para a injustiça.

Tacão do vigor, querer sem falha, amor lúcido,
Desígnios que amadurecem ao sol do meio-dia,
Estrada do destino ao ruído da mão jovem golpeando as costas;
Nesse país que se rompeu, que não resiste mais,
Nesse país que outrora foi o nosso,
Ferrugem e cinza, as ilhas se devoram.

Altares destruídos
Amigos olvidados
Folhas de palmeiras na lama.

Deixa, se podes, que as tuas mãos viajem
Neste ângulo do tempo com o barco
Que tocou o horizonte.
Quando o dado bateu na eira,
Quando a lança feriu a couraça,
Quando o olho reconheceu o estrangeiro,
E se esgotou o amor
Em almas trespassadas;
Quando olhas à volta e encontras
Em tudo os pés ceifados
Em tudo as mãos inertes
Em tudo os olhos escurecidos;
Quando não há mais escolha, nem mesmo
A morte que desejavas tua,
Escutando algum grande grito,
O grito mesmo do lobo,
Teu débito;
Dexa que as tuas mãos viajem, se podes,
Separa-te do tempo enganador,
E abate-te
Como se abate aquele que leva as grandes pedras.



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 97/8

XX

Andrômeda

Em meu peito abre-se de novo a chaga
Quando as estrelas baixam, misturando-se a meu corpo
Quando o silêncio cai sob o passo dos homens.

Estas pedras que afundam nas idades, até onde me arrastarão?
O mar, o mar, quem o esgotaria?
Vejo as mãos que sinalizam para o abutre, o falcão, toda manhã.
Ligado a este rochedo feito meu pela dor,
Vejo as árvores respirarem o obscuro repouso dos mortos
E os sorrisos, imutáveis, das estátuas.
Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 83

XVI

''E seu nome é Orestes.''
SÓFOCLES, Electra, 674.
Na arena outra vez, e sempre na arena!
Quantas voltas, e circuitos de sangue, sombrios
Degraus de rostos que olham...Esta multidão que me olha,
Que me olhava quando, de pé no carro,
Levantei alto a mão, radiante, e ela me aclamou!
A espuma dos cavalos me açoita. Quando chegarão
À meta? O eixo range, o eixo aquece, quando se incendiará?
Quando se romperão as rédeas, e os cascos
Afinal pisarão a relva tenra
Entre as papoulas onde, na primavera,
Colheste uma margarida?
Eram belos, os teus olhos. Mas não sabias o que olhasses
E eu mesmo não sabia o que olhar, eu que luto,
Justamente aqui, sem pátria - quantas voltas e circuitos ! -
E que sinto meus joelhos curvarem-se no eixo,
Nas rodas, na pista selvagem.
Comodamente dobram-se os joelhos quando os Deuses assim o
determinam.
Ninguém pode escapar; para que lutar, resistir?
Não podes escapar a este mar que te embalou, e que procuras,
Neste instante de luta, no sopro dos cavalos,
Com as canas que cantavam no outono ao modo lídio,
O mar nunca tornarás a ver, nem mesmo de passagem,
Voltando sem delonga à presença das sombras
Eumênides que se aborrecem e não perdoam.


Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 75

domingo, 18 de julho de 2010

VII

Vento do Sul


O mar para Oeste se confunde com a linha das montanhas.
A nossa esquerda, o vento do Sul sopra deixando-nos loucos,
Esse vento que descarna os ossos,
Entre os pinheiros e as alfarrobeiras, nossa casa.
Grandes janelas. Grandes mesas
Para escrever as cartas que te havemos escrito
Desde há tantos meses, e que lançamos
Ao centro da separação, para a igualar.
Estrela da aurora, quando baixavas os olhos
Nossas horas eram mais doces que o azeite
Na chaga, mais ligeiras que a água fresca
No palácio, mais plácidas que a penugem do cisne.
Sustentavas nossa vida em tua mão.
Depois do pão amargo do exílio.
Se permanecemos à noite diante a parede branca
Tua voz nos chega como a esperança duma chama;
E esse vento de novo
Afia sua lâmina em nossos nervos.
Escrevemos-te cada qual as mesmas coisas
E cada qual fica silencioso diante o outro
A olhar cada qual para si, o mesmo mundo,
Trevas e claridade sobre a linha das montanhas
E tu.
Que espantarás esta tristeza de nossos corações?
Ontem à noite, um aguaceiro e hoje
Pesa de novo o céu encoberto. Nossos pensamentos
Como as agulhas de pinheiro, amassadas, inúteis
À porta de nossa casa, sob o aguaceiro de outrora,
Esforçam-se por levantar uma torre que desaba.
Nessas aldeias dizimadas,
Sobre o cabo entregue ao vento do Sul
Com esta linha de montanhas diante de nós, que te oculta,
Quem nos creditará por nossa vontade de esquecimento?
Quem neste fim de outono acolherá nossa oferenda?



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 57/8

sexta-feira, 16 de julho de 2010

II

Outro poço, uma gruta.
Era-nos fácil dele retirar, outrora, ídolos e adornos,
Assim dando prazer aos seus amigos que nos eram ainda fiéis.
Partidas as cordas. Sulcos apenas na borda
Lembram-nos a felicidade desaparecida.
''Os dedos apalpam a borda'', disse o poeta.
Os dedos apalpam o frescor da pedra um instante
E a febre do corpo se espalha na pedra
E a gruta joga sua alma e a perde
A todo instante, cheia de silêncio, sem uma gota.




Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 47


Nota: ''Os dedos da borda'', disse o poeta. Dionysos Solomos, A mulher de Zante:''E os Justos, quantos são eles segundo a Santa Escritura? E, pensando nisso, meus olhos tombaram sobre minhas mãos, postas na borda do poço.''

I

O mensageiro
Três anos o esperamos
Olhos fixos nos pinheiros,
Na margem e nas estrelas.
Estreitamente unidos à relha da charrua, à quilha do barco,
Queríamos achar a semente primeira
E que recomeçasse o drama tão antigo.

Voltamos a casa esfalfados,
Os membros partidos, a boca roída
Pelo gosto da ferrugem e do sal.
Ao despertar, navegamos para o Norte, estrangeiros,
Enterrados no coração dos nevoeiros
Por asas imaculadas de cisnes que nos machucavam.
Nas noites de inverno, o vento furioso do Leste deixava-nos loucos.
No verão, desorientávamo-nos na agonia do dia incapaz de morrer.

Trouxemos estes entalhes de uma arte bem humilde.



Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 45
Um dia, Seferis descreveu-se nos seguintes termos: ''Sou um homem monótono e obstinado que, há mais de vinte anos, não se cansa de repetir as mesmas coisas.''


in 'Pequena História' da Atribuição do Prémio Nobel a Giorgos Seferis, pelo Dr. Kjell Strömberg


Giorgos Seferis. Poemas. Trad. de Darcy Damasceno. Estudo introdutivo de C. TH. Dimaras. Editora Opera Mundi. Rio de Janeiro, 1973., p. 20/1
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