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segunda-feira, 10 de maio de 2010

1

I

por caminhos de lavanda e urze: raso,
o sangue sob a plaina dos dedos,

enquanto a mão aprende
toda a beatitude do mundo


a mão alçada sobre a lua dos olhos,
o gesto é conciso
como uma imagem impossível


II

depois, ameias entre os venenos,
os versos:

carótida, laringe, fuligem, falange


os versos: um secreto combate, os versos

tantas vezes não mais que sombras

entre a luz nocturna da lâmina
e a doçura da pálpebra



III

em verdade falo apenas do que há
dentro dos nomes

o que há dentro de um nome?

em verdade falo apenas de um imóvel caminho

um lentíssimo modo de rumar
ao silêncio


Luís Felício

domingo, 11 de abril de 2010

diante do mar

diante do mar

antevejo as planícies místicas de outubro,
quando o vento trás o travo das gaivotas
à boca semeada das papoilas da primavera

é verdade, há um caminho secreto que conduz,
através dos verdes campos de maio,
à casa que, regada do incêndio do verão
mostra em outubro que, depois da bucólica infância
das imagens, vem sempre o espaço do poema:


o olhar que distende o movimento da mão conduz
à casa a casa a casa a casa
a conciliação dos trabalhos da mão
com o perfume do silêncio


então, antevejo:
o poema é a mão que corrige o olho,
que antecipa a eternidade

sou o caminho dessa mão
que antevê o cálculo
do marinheiro que manobra
o astrolábio da canção

essa mão é todo o corpo do poema

a mão que distende o travo das manhãs pela paisagem
e mantém sempre todo o silêncio junto ao peito,

a mão que escreve as marés as marés as marés
e trás a lua a lua a lua para o olho,
e trás a lua condenada pela carne e pelo sal
à degustação das parábolas


entretanto,
o gosto progride, como um segredo

a mão promove uma lenta infância que se alarga,
um caminho através do poema, que
não teme a derrocada das casas, que
promove o anseio salubre que
as planícies infundem no rosto da criança
adormecida

sabe-se que
diante do mar, todos os caminhos levam ao silêncio


Luís Felício

campânulas

I
campânulas de vidro desenhado
sobre o vidro, de vidro

as mãos de vidro

e a infância,

(dentro das casas
de vidro os meus lábios)

o vento norte entre
a espada e a parede

e a mão entre a lavra da cal
e a doçura do silêncio

e, de vidro a boca pouca louca
para tanta água

de vidro sempre
a veia a pretexto do sangue/
do texto

o palimpsesto das mãos
enredadas no odor

no poema, isto é
, a pele à tangente do perfume
e os lábios postos
sobre, muros, a letra a lâmina

tão precisas na melodia

a voz tangida no leito da pedra

de vidro
o poeta, isto é

, ser um rio
e ver tudo a partir
do interior do sangue

e também depois o gesto de acompanhar as sebes
à transparência de um eco

hermes olhando os quintais
hermes caído sobre olhos de barro dos animais

todo o rubro desaire do epifonema, a canção


a boca sempre tão próxima do silêncio

(o lábio dedilhado o cume dos ulmeiros
em noites)


II
campânulas, os poemas, lentíssimas casas de ar
essa mínima raiz do inverno

transparente ciência infusa,
o gesto puro e simples de tocar
alguém com um nome, assim

e brilha também ao alto
o sangue a linfa a lava

nos coágulos silábicos do texto

enquanto na extremidade mais porosa da memória
um anjo estremece dentro da madeira

uma ave-campânula semeada em chão de página


é este todo o acto que obsidia, o acto
de circunscrever odores a precisão melódica

toda a sintaxe erguida
a partir

do mármore, do sal, da prata


ciência sonora do sangue

o fundo poder de adivinhar e dizer
por palavra

o eco dos olhos na pureza do leito

e gesto de respirar a prumo
o aprumo
dos nomes

quero as suas vogais de silêncio

o modo como são de vidro
quando tocados,

(como os teus lábios,- agora)

III
campânulas,
os nomes
o som que fazem,-
a face que dão

e como me comovem os dedos-

ao passar por elas adentro
todo o rumor do mundo, todo o mundo omisso
entre a lavrada terra funda
e a infundida leveza do verso,-pele a pele-

os nomes o oculto labor de adivinhar
por gesto

o oculto gesto de escrever
o eco dos olhos sobre o vidro

e, de vidro, depois, de vidro a música; / duvido
de vidro, duvido
que haja outra forma de cantar
senão com a mão funda dentro
do sangue
e o astro-lábio habilitado
à síncope melódica

não há outra forma

senão (com) a mão

lavrando campânulas sobre
o vidro eléctrico


IV
os (pro)nomes agora
como (?)

espelhos olhando espelhos
olhados olhos olhados a partir
do omisso centro das imagens

(porque) é uma confiança cega, o ritmo, o coração

é assim que se perde finalmente um rosto


e diz-se "a mão na pena vale a mão na charrua"

e senta-se (-se) assim, levíssimo, feito tão-só de ar,
num verão de amoreiras em torno do pensamento

(os pronomes, também o gesto
de te dar os meus lábios à distância
de um eco)

o gesto de te dar um nome sem nome

(o gesto de te dar o nome com te olho)

V

são gestos as palavras
(e como eu amo esses rostos de estanho)

os nomes, por eles

convoca-se incêndios em celeiros de amor
porque tudo é sempre devido àquele
que conheceu o mundo
e entrou solícito no leito do perfume

os nomes
escreve-se o leito do odor o peso da mão
o eco do rosto contíguo a muros
escreve-se e não se lamenta nenhum espelho

os nomes
atravessa-se sempre a água só de a respirar

e pensa-se em campânulas com o sangue do avesso


"do mundo", pensa-se em árvores semeadas
sobre a lavra do pó

pensa-se em poemas, em anjos cor de cedro
estremecendo, e acredita-se (sabe-se)
que tudo está sempre por fazer

acredita-se no puro movimento das palavras,
como se

incêndios de aves rodeassem

in-ter-mi-ten-te-mente
o tímpano


e, mente o tímpano que ouve a/à distância

"todo o anjo é terrível"

a mão no perímetro órfico

os nomes: todo o amor por fazer

e descobre-se subitamente que é preciso tão-só
plantar as coisas no vento: campânulas

para que o pássaro de boca do poema
possa sempre acompanhar a mão, os lábios
rumo à cega floração do sal

é no centro da mão que vejo nos nomes

a cegueira começando a florescer,
(mas não hermeneuicamente)


VI
campânulas os poemas assim escritos
no contágio de
lume ave âmbar ar
o movimento da boca nos nomes
o sucinto peso lúbrico

e depois o seráfico olhar dos nomes,
como se não fossem já

a boca já antes do gesto dentro
do leito da pedra

e, de vento os poemas: som, som, som
som, habilitado à travessia do odor


sim, corpos, gestos: o odor deslocado no sopro

mãos depois, mãos: o odor colhido nos leitos

sim, o poema começa sempre pela
abdicação dos olhos

vidro escrito sobre vidro,escrito
apesar de tudo e de nada

"no mundo"


VII
começa-se sempre por querer
sem saber

eco e narciso ( é a única verdadeira
história de amor)

(peito repetindo as ondas do mar)

o impossível

as mãos aflitas
sobre a roupa
(des)atentas ao perfume

a semente desatada no gesto de te tocar os olhos
por detrás do vidro
(os teus, que são tão belos)

e no poema, a louca lunação dos nomes
a boca sempre debruçada sobre o aroma

nunca houve outra forma
de escalar a infância
senão pelo som

(a forma como o ar oferece o seu corpo
hoc est enim corpus meum)

nunca houve outra palavra.



Luís Felício
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