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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

«Eu sabia que ela iria provavelmente ficar muito confusa e que não iria assimilar tudo de uma vez, mas também sabia que iria captar, e muito bem, o essencial. E foi exactamente isso que aconteceu. Ficou branca como um lenço branco, tentou dizer qualquer coisa, mas os lábios moviam-se penosamente; afundou-se na cadeira como se lhe tivesse caído um machado em cima. E durante todo o tempo que se seguiu, ela ouviu-se com a boca aberta e os olhos esbugalhados, estremecendo de puro terror. O cinismo, o cinismo das minhas palavras era demasiado avassalador para ela...»




Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 108
«Havia algo que não estava morto dentro de mim, algo que nas profundezas do meu coração e da minha consciência não morria e que se revelava numa depressão profunda.»




Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 97

Quando morreres

«Quando morreres, serão mãos estranhas que te levarão, com impaciência e resmungos; ninguém te abençoará, ninguém suspirará por ti, apenas quererão livrar-se de ti o quanto antes; comprarão um caixão, sepultar-te-ão como fizeram àquela pobre mulher hoje e brindarão à tua memória na taberna.»



Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 92
    « - Porque é que tu... - começou ela e depois parou. Mas eu compreendi: havia na sua voz algo diferente, já não saía abrupta, ríspida e inabalável como antes, agora era suave e acabrunhada, tão acabrunhada que, de repente, me senti envergonhado e culpado.
     - O quê? - perguntei, com enternecida curiosidade.
     - Porque é que tu...
     - O quê?
     - Porque é que tu...falas como uma espécie de livro? - perguntou ela, e havia novamente uma nota de ironia na sua voz.»



Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 88/9

muita coisa se constrói com base no respeito

«O amor é um mistério sagrado e deve ser escondido de todos os outros olhos, aconteça o que acontecer. Isso faz com que seja mais sagrado e melhor. Respeitam-se mais um ao outro e muita coisa se constrói com base no respeito.»


Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 87

domingo, 14 de agosto de 2011

« - Oh, não estou a fazer-te um interrogatório. Não tenho nada a ver com isso. Porque estás tão zangada? É claro que podes ter tido os teus problemas. Que tenho eu a ver com isso? Simplesmente tive pena.
   -Pena de quem?
   -De ti.
   - Não é preciso - sussurrou ela de forma quase inaudível, fazendo novamente um leve movimento.
    Aquilo enraiveceu-me imediatamente. O quê!? Eu estava a ser tão meigo com ela e ela...
    -Ora, pensas que estás no caminho certo?
    -Não penso nada.
    -Isso é que está mal, não pensares. Compreende isso, enquanto é tempo. Ainda há tempo. Ainda és jovem, bem parecida. Podes amar, casar-te, ser feliz...
    - Nem todas as mulheres casadas são felizes - retrucou bruscamente com o mesmo tom rude que usara inicialmente.
    - Nem todas, claro, mas de qualquer forma é muito melhor do que a vida aqui. Infinitamente melhor. Para além disso, com amor podemos até viver sem felicidade. Até mesmo na mágoa a vida é doce. A vida é doce independentemente de como  vivamos. Mas o que há aqui senão... sujidade? Pff!»




Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 83

Fico contente por parecer repulsivo aos olhos dela. Isso agrada-me.

«Olhei mecanicamente para a rapariga que entrara e vislumbrei uma face fresca, jovem, algo pálida, com sobrancelhas direitas e escuras e com olhos sérios, interrogativos, que me atraíram de imediato; tê-la-ia odiado se estivesse a sorrir. Comecei a olhar para ela com mais atenção e, por assim dizer, esforçadamente. Ainda não tinha conseguido pôr ordem nos meus pensamentos. Havia algo de simples e de boa índole nas feições dela, mas também algo estranhamente sério. Tenho a certeza que isso a prejudicava naquele lugar e que nenhum dos outros tolos havia reparado nela. Contudo, não se podia dizer que era uma beldade, embora fosse alta, aparentemente forte e com boa estatura. Estava vestida de forma simples. Alguma coisa detestável se agitou dentro de mim. Fui logo ter com ela.
     Por acaso olhei para o espelho. Achei que o meu rosto perturbado era extremamente repugnante, pálido, irado, abjecto, com o cabelo desalinhado.
    «Não importa, fico contente», pensei. «Fico contente por parecer repulsivo aos olhos dela. Isso agrada-me.»



 Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 78/9
«A luz dos candeeiros das ruas desertas brilhava mortiça na escuridão nevada, como a das tochas num funeral. A neve esgueirava-se para dentro do meu sobretudo, do meu casaco, para baixo da minha gravata e derretia-se. Não me agasalhei. De qualquer forma, estava tudo perdido.»


 
Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 77

sábado, 13 de agosto de 2011

«No fundo do meu coração nunca fui cobarde, mas sempre o fui pelos actos. Não riam já - asseguro-vos que posso explicar tudo.»



Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 47

«Em primeiro lugar, passava a maior parte do meu tempo em casa, a ler. Tentei abafar tudo o que lhe fervilhava constantemente dentro de mim por via de impressões externas. E a única forma externa a meu dispor era ler. Ler, claro, era uma grande ajuda: excitava-me, dava-me prazer e dor. Mas por vezes entediava-me terrivelmente. Apesar de tudo, ansiamos sempre por algum movimento e eu mergulhava de cabeça nos vícios da pior espécie, nos mais sombrios, clandestinos e detestáveis vícios. As minhas malditas paixões eram agudas e dolorosas devido à minha contínua e doentia irritabilidade. Tinha impulsos histéricos, com lágrimas e convulsões. Não tinha outro recurso senão a leitura, quero dizer, nada daquilo que me rodeava merecia o meu respeito ou me atraía. Também estava esmagado pela depressão. Sentia ânsia pela incongruência e pelo contraste, por isso recorri ao vício. Não disse tudo isto para me justificar...Não!»



Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 46
«A sua capacidade de ter muitas facetas é notável! E que susceptibilidade têm às sensações mais contraditórias!»


Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 45

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

«Será que se estão novamente a rir? Riam à vontade; prefiro tolerar qualquer tipo de escárnio a ter de fingir que estou satisfeito quando estou esfomeado.»



Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 35
«Não gostará talvez o homem de outra coisa para além do bem-estar? Não poderá talvez o sofrimento ser-lhe igualmente querido? Não será talvez o sofrimento um benefício tão grande para ele como o bem-estar? Às vezes, o homem está estraordinária e apaixonadamente enamorado pelo sofrimento; é um facto. Não há necessidade de recorrer à história universal para o provar; basta que se pergunte se são homens e se viveram realmente. No que toca à minha opinião pessoal, preocuparmo-nos somente com o bem-estar parece-me verdadeiramente má educação. Seja bom ou mau, às vezes também é muito agradável em destruir coisas. Não advogo o sofrimento, assim como não advogo o bem-estar. Estou a favor do meu...capricho e de que este me esteja assegurado quando necessário.



Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 34

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Dizem que Cleópatra

«Dizem que Cleópatra (permitam-me dar um exemplo da história romana) gostava de espetar alfinetes dourados nos seios das suas escravas e que os gritos e contorções destas lhe proporcionavam alguma satisfação. Dir-me-ão que isso se passou em tempos comparativamente bárbaros; que os tempos que vivemos actualmente também são bárbaros, porque, falando comparativamente, também se espetam alfinetes; que embora o homem tenha aprendido a ver mais claramente do que nas eras bárbaras, ainda está longe de ter aprendido a agir como a razão e a ciência ditam.»



Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 25
«Mas o homem tem uma predilecção por sistemas e deduções abstractas que está pronto a distorcer a verdade intencionalmente, está pronto a negar as evidências que advém dos sentidos, somente para justificar a sua lógica. Escolhi este exemplo porque é o caso mais flagrante do que acabei de dizer. Basta olharmos à nossa volta: o sangue é derramado aos litros e com o mais leve dos ânimos, como se fosse champanhe. Veja-se o exemplo de todo o século XIX no qual Buckle viveu. Veja-se Napoleão, o Grande, e também o actual. Veja-se a América do Norte - a eterna união. Veja-se a farsa de Schleswig-Holstein...E afinal o que é que a civilização torna mais brando em nós? A única mais-valia da civilização para a humanidade é possibilitar uma maior variedade de sensações...e absolutamente mais nada. E com o desenvolvimento da capacidade de ser multifacetado, o homem pode chegar a ponto de encontrar prazer no derramamento de sangue. De facto, isto já lhe aconteceu. Já repararam que os homens mais civilizados foram os sanguinários mais subtis, aos calcanhares de quem os Átilas e os Stenka Razins não conseguem chegar?»





Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 24/5

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

«Ha, ha, ha! A seguir vais encontrar prazer numa dor de dentes» irão dizer-me às gargalhadas.
 «Bem, mesmo numa dor de dentes há prazer», respondo eu.



Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 17

sábado, 6 de agosto de 2011

«Mas de que pode um homem decente falar com grande prazer?
   Resposta: de si próprio.
   Pois bem, falarei de mim.»





Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 10
   «A questão não era apenas não saber como tornar-se malévolo, a questão era não saber como tornar-me no que quer que fosse; nem malévolo nem bondoso, nem numa víbora nem num homem honesto, nem num herói nem num insecto. Agora, vivo a vida no meu canto, martirizando-me com a odiosa e inútil consolação de que um homem inteligente não pode séria e verdadeiramente tornar-se no que quer que seja, só os tolos se tornam nalguma coisa.  Sim, no século XIX, um homem deveria ser, e moralmente tinha de ser, preeminentemente uma criatura desprovida de carácter; um homem de carácter, um homem activo é preeminentemente uma criatura limitada. É esta a minha convicção de quarenta anos. Tenho agora quarenta anos e, a mais completa velhice. Viver mais do que quarenta anos é má educação, é vulgar, é imoral. »





Fiódor Dostoiévski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 9

terça-feira, 12 de julho de 2011

Eu era assim.

   «Mas sabem, senhores, qual era o ponto fulcral da minha maldade? Pois bem, a questão principal, o que verdadeiramente me doía assentava no facto de estar sempre, mesmo nos momentos mais viscerais, interna e envergonhadamente consciente de nem sequer ser um homem malévolo, muito menos amargo, de que me limitava a espantar pardais aleatoriamente e que me divertia com isso. Podiam espumar da boca, mas traziam-me uma boneca para brincar, davam-me uma chávena de chá com açúcar e era provável que conseguisse ser apaziguada. Podia até acontecer ficar genuinamente sensibilizado, embora depois, provavelmente, rangesse os dentes e ficasse durante meses acordado à noite com vergonha. Eu era assim.»




Fédor Dostoievski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 8
«Sou um homem doente...Sou um homem malévolo. Sou um homem repugnante. »


Fédor Dostoievski. Notas do Submundo. Trad. Rosário Morais da Silva. Publicações Europa-América, Lisboa, 2007., p. 7
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