Mostrar mensagens com a etiqueta autores argentinos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta autores argentinos. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

«Poucas coisas me aconteceram e muitas li.»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.137

Le regret d' Heraclite

Eu, que tantos homens fui, não fui jamais
Aquele em cujo abraço desfalecia Matilde Urbach.

Gaspar Camerarius, in DELICIAE
POETARUM BORUSSIAE, VII, 16




Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.131

Quarteto

Morreram outros, mas isso aconteceu no passado,
Que é a estação (ninguém o ignora) mais propícia à morte.
É possível que eu, súbdito de Yaqub Almansur,
Morra como tiveram que morrer as rosas e Aristóteles?

Do DIVÃ DE ALMOTASIM EL MAGREBI (século XII)



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.123

Arte poética

Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme nossa carne é essa morte
De cada noite que se chama sono.

Ver no dia ou no ano um símbolo
Dos dias do homem e dos seus anos,
Converter o ultraje dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, tal é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso.

Às vezes pelas tardes uma cara
Nos olhos desde o fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo.
Heraclito inconstante, que é o mesmo.
E é ouro, como o rio interminável.

Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.119/120
(...)

Como pude perder essa precisa
Ordem de humildes e queridas coisas,
Inacessíveis hoje como as rosas
Que deu ao primeiro Adão o Paraíso?

O antigo espanto da elegia
Me aflige quando penso nessa casa
E não compreendo como o tempo passa
Eu, que sou tempo e sangue e agonia.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.116/7

Os Borges

Bem pouco ou nada sei de meus maiores
Portugueses, os Borges: vaga gente
Que prossegue em minha carne obscuramente,
Seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se não tivessem sido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente formam parte
Do tempo e da terra e do olvido.
Melhor assim. Cumprida a sua faina
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E deu-se ao mar e ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
Se perdeu e o que jura  que não está morto.




Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.99

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Poema dos dons

A María Esther Vázquez

Ninguém rebaixe a lágrima ou a censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia,
Me deu os livros e a noite escura.

Desta cidade de livros fiz donos
Uns olhos sem luz, que podem
Decifrar nas bibliotecas dos sonhos
Insensatos parágrafos que cedem

Albas ao seu afã. Em vão o dia
Lhes prodiga seus livros infinitos,
Árduos como aqueles árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e sede (conta uma história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu fatigo sem rumo os confins
Desta alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, séculos, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Lento na sombra, na penumbra oca
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Sob uma espécie de biblioteca.

Algo, que certamente não se aponta
Na palavra acaso rege estas coisas;
Outro já recebeu noutras confusas
Tardes os muitos livros e a sombra.

Ao errar pelas lentas galerias
Sinto sempre com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, que terá dado
Os mesmos passos já, nos mesmos dias.

Qual dos dois escreve este poema
De um eu plural e de uma só sombra?
Que importa a palavra que me aponta
Se o anátema é uno e indiviso?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida cinza tão vaga
Semelhante ao sono e ao olvido.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.59/60

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Inferno, I, 32

Do crepúsculo do dia ao crepúsculo da noite, um leopardo, nos últimos anos do século XII, via umas tábuas de madeira, umas vigas verticais de ferro, homens e mulheres diversos, um paredão e talvez um beiral de pedra com folhas secas. Não sabia, não podia saber que ansiava amor e crueldade e o cálido prazer de despedaçar e o vento com cheiro a veado, mas algo nele se sufocava e se rebelava e Deus falou-lhe num sonho: Vives e morrerás nesta prisão, para que um homem que eu sei te olhe um número determinado de vezes e não te esqueça e ponha a tua figura e o teu símbolo num poema, que tem o seu preciso lugar na trama do universo. Padeces de cativeiro, mas terás dado uma palavra ao poema.
Deus, no sonho, iluminou a rudeza do animal e este compreendeu as razões e aceitou o seu destino, mas apenas houve nele, ao acordar, uma obscura resignação, uma valorosa ignorância, porque a máquina do mundo é demasiado complexa para a simplicidade de uma fera.
Anos depois, Dante morria em Ravena, tão injustificado e tão só como qualquer outro homem. Num sonho, Deus declarou-lhe o secreto propósito da sua vida e do seu labor; Dante, maravilhado, soube enfim quem era e o que era e bendisse as suas amarguras. A tradição refere que, ao despertar, sentiu que tinha recebido e perdido uma coisa infinita, algo que não poderia recuperar, nem sequer vislumbrar, porque a máquina do mundo é demasiado complexa para a simplicidade dos homens.



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.55/56

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Paraíso, XXXI, 108

Diodoro Sículo refere a história de um deus despedaçado e disperso. Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao traçar uma data do seu passado, não sentiu alguma vez que se tinha perdido uma coisa infinita?
Os homens perderam uma cara, uma cara irrecuperável,  e todos queriam ser aquele peregrino (sonhado no empíreo, sob a Rosa) que em Roma vê o sudário de Verónica e murmura com fé: Jesus Cristo, Deus meu, Deus verdadeiro, era assim, pois, a tua cara?
Há uma cara de pedra num caminho e uma inscrição que diz O verdadeiro Retrato da Santa Cara de Deus de Jaén; se realmente soubéssemos como foi, seria nossa a chave das parábolas e saberíamos se o filho do carpinteiro foi também filho de Deus.
Paulo viu-a como uma luz que o derrubou; João, como o Sol quando resplandece na sua força; Teresa de Jesus, muitas vezes, banhada em luz tranquila, e não pôde nunca precisar a cor dos olhos.
Perdemos esses traços, como pode perder-se um número mágico, feito de cifras habituais; como se perde para sempre uma imagem no caleidoscópio. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfil de um judeu no subterrâneo é talvez o de Cristo; as mãos que nos dão umas moedas num postigo talvez repitam as que uns soldados, um dia, cravaram na cruz.
Talvez um traço da cara crucificada espreite em cada espelho; talvez a cara tenha morrido, se tenha apagado, para que Deus fosse todos.
Quem sabe se esta noite não a veremos nos labirintos do sonho e não o saberemos amanhã.



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.47/48

domingo, 7 de novembro de 2010

«Porque no princípio da literatura está o mito, e também no fim.»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.45

Mutações

Num corredor vi uma seta que indicava uma direcção e pensei que aquele símbolo inofensivo fora outrora uma coisa de ferro, um projéctil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e enevoou o Sol nas Termópilas e deu a Harald Sigurdarson, para sempre, seis pés de terra inglesa.
Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um cavaleiro magiar; uma corda com várias voltas rodeava o peito da sua montada. Soube que a corda, que antes andara pelo ar e submetera os touros na pastagem, não era mais que uma gala insolente do arreio dos domingos.
No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e afastados e rodeava-os um círculo. Essa cruz apertada e limitava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a «máquina vil» insultada por Luciano de Samosata.
Cruz, corda e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que maravilham, quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir.

 

Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.43

A testemunha

Num estábulo que está quase à sombra da nova igreja de pedra, um homem de olhos cinzentos e barba cinzenta, estendido entre o cheiro dos animais, humildemente busca a morte como quem busca o sono. O dia, fiel a vastas leis secretas, vai deslocando e confundindo as sombras no pobre recinto; lá fora estão as terras aradas e uma vala atulhada de folhas mortas e um rasto de lobo no barro negro onde começam os bosques. O homem dorme e sonha, esquecido. O toque da oração desperta-o. Nos reinos de Inglaterra, o som dos sinos é já um dos hábitos da tarde, mas o homem, desde pequeno, viu a cara de Woden, o horror divino e a exultação, o torpe ídolo de madeira recamado de moedas romanas e de vestimentas pesadas, o sacrifício dos cavalos, cães e prisioneiros. Antes do alvorecer morrerá, e com ele morrerão e não voltarão as últimas imagens imediatas dos ritos pagãos; o mundo será um pouco mais pobre quando este saxão tiver morrido.
Feitos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre pode maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, salvo se existir uma memória do universo, como conjecturam os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. Que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou inconsistente perderá o mundo? A voz de Macedonio Fernández, a imagem de um cavalo rubro no baldio de Serrano e de Charcas, uma barra de enxofre, na gaveta de uma secretária de acaju?



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.39/40

sábado, 6 de novembro de 2010

«(...)
 - Você é um romântico - sentenciou. - A estima da posteridade não vale muito mais que o contemporâneo, que não vale nada e que se consegue com algumas moedas.
-Conheço a sua maneira de pensar - respondeu Quiroga. - Em 1852, o destino, que é generoso e que queria sondá-lo até ao fundo, ofereceu-lhe uma morte de homem, uma batalha. Você mostrou-se indigno desse dom porque a peleja e o sangue lhe causaram medo.
-Medo? - repetiu Rosas. - A mim, que domei potros no sul e depois todo um país?
Pela primeira vez, Quiroga sorriu.
- Sei bem, - disse com lentidão - que você executou mais de uma proeza equestre, segundo o testemunho imparcial dos seus capatazes e peões; mas naqueles dias, na América, e também a cavalo, executaram-se outras proezas que se chamam Chacabuco e Junín e Palma Redonda e Caseros.
Rosas ouviu-o sem se alterar e replicou assim:
-Eu não precisei de ser valente. Uma proeza minha, como você diz, foi conseguir que homens mais valentes que eu lutassem e morressem por mim. Santos Pérez, por exemplo, que acabou consigo. A coragem é uma questão de resistência; uns são mais resistentes, outros menos, mas tarde ou cedo todos afrouxam.
-Talvez seja assim - disse Quiroga, - mas eu vivi e morri, e até ao dia de hoje não soube o que é o medo. E agora vou para que me apaguem e dêem outra cara e outro destino, porque a história farta-se dos violentos. Não sei quem será o outro, o que farão de mim, mas sei que não terei medo.
- A mim basta-me ser quem sou - disse Rosas - e não quero ser outro.
- Também as pedras querem ser pedras para sempre - disse Quiroga - e são-no durante séculos, até que se desfazem em pó. Eu pensava como você quando entrei na morte, mas aqui aprendi muitas coisas. Repare bem, já estamos ambos a mudar.
Mas Rosas não fez caso dele e disse, como se pensasse em voz alta:
- Pode ser que não esteja habituado a estar morto, mas estes lugares e esta discussão parecem-me um sonho, e não um sonho sonhado por mim, mas por outro, que ainda está por nascer.
Não falaram mais, porque nesse momento Alguém os chamou.»



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.30/31
« - Rosas, você nunca me compreendeu. E como poderia entender-me, se foram tão diversos os nossos destinos?»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.30

Delia Elena San Marco

 
Despedimo-nos numa das esquinas do Once.
Da outra vereda voltei a olhar; você tinha-se voltado e disse-me adeus com a mão.
Um rio de veículos e de gente corria entre nós; eram cinco horas de uma tarde qualquer; como iria eu saber que aquele rio era o triste Aqueronte, o insuperável.
Não nos vimos mais e um ano depois você tinha morrido.
E agora eu busco essa memória e olho-a e penso que era falsa e que por detrás da despedida trivial estava a infinita separação.
À noite saí depois de comer e reli, para compreender estas coisas, o último ensinamento que Platão põe na boca do seu mestre. Li que a alma pode fugir quando morre a carne.
E agora não sei se a verdade está na aziaga interpretação ulterior ou na despedida inocente.
Porque se não morrem as almas está certo que nas suas despedidas não haja qualquer ênfase.
Despedir-se é negar a separação, é dizer: Hoje fingimos que nos separamos, mas ver-nos-emos amanhã. Os homens inventaram o adeus porque sabem de algum modo imortais, ainda que se julguem contingentes e efémeros.
Delia: um dia reataremos (junto a que rio?) esse diálogo incerto e perguntar-nos-emos se, numa cidade que se perdia numa planície, fomos Borges e Delia.
 
 
 
 
Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.27

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Diálogo sobre um diálogo

A. - Distraídos a discorrer sobre a imortalidade, tínhamos deixado que anoitecesse sem acender a lâmpada. Não nos víamos as caras. Com uma indiferença e uma doçura mais convincentes que o fervor, a voz de Macedonio Fernández repetia que a alma é imortal. Assegurava-me que a morte do corpo é de todo insignificante e que morrer tem de ser o facto mais nulo que pode suceder a um homem. Eu brincava com a navalha de Macedonio: abria-a e fechava-a. Um acordeão vizinho despachava infinitamente a Cumparsita, essa ninharia consternada que agrada a muita gente porque lhes mentiram, dizendo que é velha...Propus a Macedonio que nos suicidássemos, para discutir sem estorvo.
Z. - (brincalhão). - Mas suspeito que por fim não se decidiram.
A. - (já em plena mística). - Francamente não me recordo se nessa noite nos suicidámos.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.15
Powered By Blogger