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domingo, 5 de fevereiro de 2012


«(...) dar-me por morto para não morrer.»


Adolfo Bioy Casares. A Invenção de Morel. Tradução de Miguel Serras Pereira e Maria Teresa Sá. 2ª Edição. Antígona, 2003, p. 31

domingo, 6 de junho de 2010

Etiquetas e Preferências

Sempre se me afigurou que o traço distintivo da nossa família é o recato. Levamos o pudor a extremos inacreditáveis, tanto na maneira de vestir e comer, como nas palavras, como a subir para o eléctrico. As alcunhas, por exemplo, que no bairro do Pacífico se adjudicam tão afoitamente, são para nós motivo de cuidado, reflexão e até de inquietude. Parece-nos que se não pode atribuir um apodo qualquer a alguém que durante toda a sua vida o deverá absorver e sofrer como um atributo. As senhoras da rua de Humboldt chamam Toto, Coco ou Cacho aos filhos e Nega ou Beba às raparigas, mas na nossa família tal tipo de alcunha não existe, e muito menos outras rebuscadas e espaventosas como Chirola, Cachuzo ou Matagatos, que abundam para os lados de Paraguay e Dodoy Cruz. Como por exemplo do cuidado que temos com estas coisas bastará citar o caso de uma minha tia. Visivelmente dotada de um traseiro de imponentes dimensões, nunca nos permitimos ceder à fácil tentação das alcunhas habituais; assim, em vez de dar-lhe o cognome brutal de Ânfora Etrusca, assentámos no de Cuzuda. Procedemos sempre com igual tacto, embora tenhamos as nossas brigas com vizinhos e amigos que insistem em motes tradicionais. Ao meu primo em segundo grau, o mais novo, notoriamente cabeçudo, sempre recusámos a alcunha de Atlas que lhe tinha sido dada na tasca da esquina e preferimos a infinitamente mais delicada de Mona. E assim por diante.
Quero esclarecer que não fazemos estas coisas para nos diferenciarmos do resto do bairro. Só desejaríamos modificar, gradualmente e sem pretender vexar os sentimentos de ninguém, as rotinas e tradições. Desgosta-nos a vulgaridade em qualquer das suas formas, e basta que algum de nós oiça no café frases como: «Foi uma partida de cariz violento», ou: «As finalizações de Faggioli foram caracterizadas por um notável trabalho de infiltração prévia da linha média», para que imediatamente nos socorramos de expressões mais castiças e aconselháveis ao caso como: «Foi cá um arraial de porrada», ou «Primeiro baratinámo-los e depois foi cá uma goleada». As pessoas olham-nos, surpresas, mas há sempre alguém que aproveita a lição existente nestas frases delicadas. O meu tio mais velho, que lê os escritores argentinos, afirma que com muitos deles se poderia fazer algo parecido, mas nunca nos explicou lá muito bem como. E é pena.


Julio Cortázar. Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p. 33/4

domingo, 11 de abril de 2010

A Dama do Unicórnio, por Rafael

Julgou Saint-Simon ver neste quadro uma confissão herética. O unicórnio, o narval, a pérola obscena do medalhão que parece ser uma fera, e o olhar terrivelmente fixo de Madalena Strozzi num ponto em que se desenrolariam cenas lascivas ou de flagelação: Rafael Sanzio mentiu aqui a sua mais terrível verdade.
A intensa cor verde do rosto da personagem atribuiu-se durante muito tempo a gangrena ou ao solstício da Primavera. Animal fálico, o unicórnio tê-la-ia contaminado: no seu corpo dormem os pecados do mundo. Viu-se depois que bastava levantar as falsas camadas de tinta colocadas por três acérrimos inimigos de Rafael: Carlos Hog, Vincent Grosjean, dito o Mármore, e Ruben o Velho. A primeira camada era verde, verde a segunda, era branca a terceira. Não é difícil vislumbrar aqui o tríplice símbolo da mortal falena, que une ao corpo cadavérico umas asas que a confundem com as folhas de uma rosa. Quantas vezes Madalena Strozzi cortou uma rosa branca, sentiu-a gemer entre os dedos, retorcer-se e gemer debilmente como uma pequena borboleta ou um daqueles lagartos que cantam como as liras quando se lhes mostra um espelho. Já era tarde, a falena tê-la-ia picado: Rafael soube, sentiu que ela estava a morrer. Para poder pintá-la com veracidade, agregou o unicórnio, símbolo de castidade, simultaneamente cordeiro e narval, que bebe pela mão de uma virgem. Mas pintava a falena na sua imagem, e este unicórnio mata a senhora, penetra no seu seio majestoso com o corno ornado de impudicícia, repete a operação de todos os princípios. O que esta mulher sustém nas mãos é a misteriosa taça de que sem saber bebemos, a sede que acalmamos noutras bocas, o vinho vermelho e lácteo donde saem as estrelas, os vermes e as estações ferroviárias.

Julio Cortázar in Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.18
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