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quinta-feira, 23 de junho de 2011

JULIETA

Eu não sou nenhuma escrava para que me cravem estiletes de âmbar nos seios, nem nenhum óraculo para os que tremem de amor à saída das cidades. O meu sonho foi sempre o cheiro da figueira e a cintura do ceifeiro. Ninguém me atravessa! Quem atravessa sou eu!




Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 55
JULIETA (Torcendo as mãos.)
Forma e cinza.

CAVALO NEGRO
Sim. Já sabem como degolo as pombas. Quando se diz rocha eu entendo ar. Quando se diz ar eu entendo vazio. Quando se diz vazio eu entendo pomba degolada.»


Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 52
JULIETA
 Cada vez mais gente. Vão acabar por invadir o meu sepulcro e ocupar-me a própria cama. A mim não me interessam nem as discussões sobre o amor nem o teatro. O que eu quero é amar.

CAVALO BRANCO 1 (Aparecendo. Traz uma espada na mão.)
Amar!

JULIETA
Sim. Com amor que dura um só momento.

CAVALO BRANCO 1
Esperei-te no jardim.

JULIETA
Queres dizer no sepulcro.

CAVALO BRANCO 1
Continuas tão louca como sempre. Julieta, quando poderás dar-te conta da perfeição de um dia? Um dia com manhã e com tarde.

JULIETA
E com noite.

CAVALO BRANCO 1
A noite não é o dia. E num dia poderás despir a angústia e afastar as impassíveis paredes de mármore.

JULIETA
Como?

CAVALO BRANCO 1
Sobe para a minha garupa.

JULIETA
Para quê?

CAVALO BRANCO 1 (Aproximando-se.)
Para te levar.

JULIETA
Para onde?

CAVALO BRANCO 1
Para o escuro. No escuro há ramas suaves. O cemitério de asas tem mil superfícies de espessura.

JULIETA (Tremendo.)
E lá, o que me vais dar?

CAVALO BRANCO 1
Vou dar-te o mais calado do escuro.

JULIETA
O dia?

CAVALO BRANCO 1
O musgo sem luz. O tacto que devora pequenos mundos com as pontas dos dedos.

JULIETA
E eras tu quem ia mostrar-me a perfeição de um dia?

CAVALO BRANCO 1
Para te levar para a noite.

JULIETA (Furiosa.)
E que tenho eu a ver com a noite, cavalo idiota? Que tenho eu a aprender com as suas nuvens ou com os seus bêbados? Vou precisar de veneno dos ratos para me ver livre dos maçadores. Mas eu não quero matar os ratos. Trazem-me pianinhos e pincelinhos de verniz.

CAVALO BRANCO 1
Julieta, a noite não é um monumento, mas um monumento pode durar toda a noite.

JULIETA (Chorando.)
Chega. Não te quero ouvir mais. Para que queres levar-me? É o engano a palavra de amor, o espelho quebrado, o passo na água. Depois deixavas-me no sepulcro outra vez, como todos fazem quando tratam de convencer quem os ouve de que o verdadeiro amor é impossível. Já estou cansada e levanto-me a pedir auxílio para escorraçar do meu sepulcro todos os que teorizam sobre o meu coração e todos os que me abrem a boca com pequenas pinças de mármore.

CAVALO BRANCO 1
O dia é um fantasma que se senta.

JULIETA
Mas eu conheci mulheres mortas pelo sol.

CAVALO BRANCO 1
Entende bem um só dia para amares todas as noites.


Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 47-49

quarta-feira, 22 de junho de 2011

HOMEM 2

  Esqueceste-te de que sou forte quando quero. Era eu menino e já jungia os bois do meu pai. Tenho os ossos cobertos de minúsculas orquídeas, mas tenho uma capa de músculos que utilizo quando quero.



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 46
FIGURA DE PARRAS
    Toma um machado e corta-me as pernas. Deixa que venham os insectos da ruína e vai-te. Porque te desprezo. Queria que me talhasses até ao fundo. Cuspo-te.


FUGURA DE GUIZOS
  Queres? Adeus. Ainda bem. Se for andando pelas ruínas hei-de encontrar amor e mais amor.



FIGURA DE PARRAS (Angustiado.)
Onde vais? Onde vais?


FIGURA DE GUIZOS
Não queres que eu vá?



Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p. 30
FIGURA DE GUIZOS  (Tremente.)
E se eu me transformasse em peixe-lua?


FIGURA DE PARRAS (Levantando-se.)
Eu transformava-me em faca. Numa faca afiada durante quatro longas primaveras.



FIGURA DE GUIZOS
  Leva-me ao banho e afoga-me. Será a única maneira de me poderes ver nu. Pensas que tenho medo do sangue? Sei como dominar-te. Julgas que não te conheço? Dominar-te tanto, que se eu dissesse «Se eu me transformasse em peixe-lua?», tu respondias-me «Eu transformava-me numa bolsa de ovas pequeninas.»




Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.29
FIGURA DE PARRAS

  Sigo-te quando rondas a cama e as coisas da casa, mas não te sigo para os sítios para onde tu, subtilmente, queres levar-me. Se tu te transformasses em peixe-lua, eu abria-te com uma faca, porque sou um homem, porque nada mais sou do que isso, um homem, mais homem que Adão, e quero que tu sejas ainda mais homem do que eu. Tão homem que as ramas se calem quando passares. Mas tu não és um homem. Se eu não tivesse esta flauta tu fugias para a lua, para a lua coberta de paninhos com rendas e gotas de sangue de mulher.




Frederico Garcia Lorca. O Público. Trad. de José Manuel Mendes, Luís Lima e Luís Miguel Cintra. Edições Cotovia, Lisboa, 1989, p.28

sábado, 4 de junho de 2011

«Sinto-me envergonhado de meus anos
a que pudera dar um melhor uso,
buscando a paz e não seguindo enganos.»


Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.49
 «Como de entre meus dedos tu resvalas!
Minha idade, como és fugidia!»


Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.45

Arrependimento e lágrimas devidas ao engano da vida

     Foge sem perceber-se, lento, o dia,
e a hora secreta e recatada
silenciosa chega e, maltratada,
leva consigo a minha louçania.
     A vida nova, que em infância ardia,
a juventude forte e enganada,
no derradeiro inverno sepultada,
jazem em negra sombra e neve fria.
    Não senti resvalar, mudos, os anos;
hoje choro-os passados, bem os vejo
rir-se de minhas lágrimas e danos.
    O meu remorso deva a meu desejo,
pois devem-me a vida os meus enganos,
não creio nem na dor em que latejo.



Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.33

sábado, 28 de maio de 2011

Significa-se a própria brevidade da vida sem pensar e com padecer, assaltada pela morte

    Foi sonho ontem; será amanhã terra;
pouco antes, nada; pouco depois, fumo;
e destino ambições, até presumo
um só momento o cerco que me encerra.
     Breve combate de importuna guerra,
pr'a defender-me, sou perigo sumo;
quando com minhas armas me consumo,
menos me hospeda o corpo, que me enterra.
     Foi-se o ontem; amanhã é esperado;
hoje passa, e é, e foi com movimento
que me conduz à morte despenhado.
     Enxadas são a hora e o momento;
pagas por minha pena e meu cuidado,
cavam em meu viver meu monumento.



Francisco Quevedo. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987, p.33
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