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terça-feira, 21 de março de 2023

« essa , a abandonada, a que, por vezes,
é percorrida pelo arrepio,
pela frialdade da separação,
a que enlouquece na procura,
a nua, a que perdeu,
a que não sabe segurar-se e oscila,
fora do equilíbrio, decepada,
em si mesma contida, única, pobre,
sobrevivente das primeiras coisas,

ela, a deixada para sempre só,
a que corre nos charcos, em demanda
da pertença maior, a que estremece,
atravessada pelos elementps,
a água, o fogo, o vento, até as pedras,
ela que é fácil de dilacerar,
fácil de espezinhar, uma ligeira 
superfície dançante,
cheia de morte, ornamentada pela morte
com dourados objectos musicais,»


Hélia Correia. Acidentes. Relógio D'Água, novembro, 2020., p. 55/6

terça-feira, 20 de julho de 2021

Talvez seja a Grécia em mim. Há tentativas múltiplas de a entender
à luz da nossa lógica e ela escapa- se-lhe. É isso que estimula o meu
convívio com os gregos todos os dias, algo da ordem do desejo.


 Hélia Correia, de uma entrevista a Ana Marques Gastão (Diário de Notícias).

 A literatura não se sente bem no mundo de que dispomos e a que chegámos.

 Hélia Correia, de uma entrevista a Ana Marques Gastão (Diário de Notícias)

domingo, 16 de maio de 2021

« sA  Que palavra, que verso, que frase gostaria de nos deixar para que depois possa vir a chuva? “Lançai-me uma palavra, como alguns / atiram côdeas aos cães”, sim?

HC — Epea Pteroenta, as palavras aladas cantadas por Homero, continuam a dar-me emoções gratas. Ele, que a lenda tem por cego, via-as sair das bocas como pássaros e lançar-se num voo com o som, com o brilho, com o volume, a cor e a leveza de um pequeno animal canoro e emplumado. Eu tomo muitas vezes as palavras por pássaros e os pássaros por palavras.  É tão reconfortante ver como uma invenção recente, o helicóptero, tomou o nome das palavras gregas, hélix, espiral e pteron, asa. E há aqueles que lhe chamam «língua morta»!…»


Entrevista aqui.


 Lançai-me uma palavra, como alguns / atiram côdeas aos cães

Hélia Correia

“Só preciso da primeira frase. Quando aparece a primeira, depois chove.”

 Hélia Correia

«sA — Serão elas de alguma forma os novos Deuses que os humanos encontraram para colmatar os Deuses religiosos que se foram, e que por sua vez já tinham colmatado a ausências dos Deuses clássicos que também se tinham retirado? É uma espécie de Mito de Sísifo o repetitivo ciclo da cegueira dos seres humanos que lhes faz criar sempre mais novos Deuses para de novo os cegar?

HC — Não sejamos tão trágicos. É assim: hoje, no Ocidente, não se obriga ninguém. Quem se embebeda fá-lo porque quer. Quem quer ter audiências maiores do que as de Hyde Park, instala o FB ou semelhante, e aceita as amizades que apareçam. Até funciona para acasalamentos. Tudo isto é, simplesmente, afirmação do ego, com substrato vagamente libidinal, preservação do indivíduo, em primeiro lugar, e da espécie, em segundo, organização de tribos, predomínio do que melhor souber mostrar a cor das penas. É, no fundo, uma coisa inofensiva, que só por exagero trará perigo.

Lembram-se da euforia dos exércitos quando lhes apareceram as espingardas? O matar à distância, sem contacto, muito longe do alcance das espadas? Assim estamos agora, formidáveis neste novo exercício do poder, vendo os familiares que estão longe, dando a ler os versinhos que fizemos, aliciando para um encontro ou convocando algum ajuntamento.

Há uma coleção de afinidades, porque somos gregários e já não vamos a clubes, sejam populares ou chiques. Tudo isto é um pouco sobre-humano, mas não superámos nós, há muito tempo, a velocidade da corrida pedestre? Não voamos?

Eu cito muita vez Matthew Arnold que, sobre a excitação que o comboio levara às cidades inglesas, comentou: «Não percebo este entusiasmo de sair de um lugar sem graça alguma e apanhar o comboio só para chegar mais depressa a outro lugar sem graça alguma».

A entrevista aqui.

 1.

Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
Dois séculos corridos sobre a hora
Em que foi escrita esta meia linha,
Não a hora do anjo, não: a hora
Em que o luar, no monte emudecido,
Fulgurou tão desesperadamente
Que uma antiga substância, essa beleza
Que podia tocar-se num recesso
Da poeirenta estrada, no terror
Das cadelas nocturnas, na contínua
Perturbação, morada da alegria;

7.
Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizavam
Olhando para cima, para as torres,
Supondo que as podiam habitar,
Glória das águias que nem águias tem,
Sofremos, sim, de idêntica indigência,
Da ruína da Grécia.

23.
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.


Hélia Correia in A Terceira Miséria, Relógio d’Água, 2012

''O Ocidente, coitado, tem os ossos fracos e os ouvidos gastos, lê-se a si mesmo, fecha-se ao diferente.''

Hélia Correia

''a língua portuguesa está ameaçada de morte''

 Hélia Correia

 

ESMOLA

I

Lançai me
uma palavra, como alguns
atiram côdea aos cães.
Uma palavra
que, embrulhada nesse cuspo
que vos escorre pelos queixos,
brilha
e desconcerta a própria
repugnância.
Sacudi a
de vós, tal como alguém
sacode a lama seca do sapato
sem perceber sequer que lama é
porque não tira os pés
do alcatrão.
Essa palavra abandonada à porta,
eu a recolherei, como se houvesse
nela um pedido,
a súplica de um órfão,
de uma cria deixada para
morrer.
Eu pegarei nessa palavra ao colo
e, não sabendo onde encontrar abrigo
nem alimento,
dormirei com ela,
ouvindo a
murmurar,
enquanto os bosques
vão crepitando e a cinza
nos recobre.

II

Mas entregai uma qualquer palavra,
dessas que tanto desprezais,
ao meu cuidado.
Uma palavra, por exemplo,
sobre a qual
ninguém se incline já
porque a confunde
com uma pedra do caminho
ou um excremento,
tão insignificante
se tornou.
Oh, que estranho é pensar que elas tiveram,
até, reis como servos, as palavras.
Pensar que elas passavam pelos séculos
com o seu corpo musical, tão frágil
e tão convocador de tempestades.
Essas pequenas criaturas transparentes,
sem peso, com alguma vocação
para a malignidade, pois não têm
nem sombra nem reflexo,
e dos seus dedos
desce a grande beleza do terrível
e a grande redenção
que há no poema.

III

Pequenas, misteriosas criaturas
que não nascem do mundo natural,
que são obra dos homens,
sendo os homens a obra delas,
vejo as
hoje mais do que escorraçadas:
submetidas.
Elas que eram solenes e risonhas,
tanto mais necessárias quanto inúteis,
e tanto mais inúteis quanto pura
exaltação do texto, essas palavras
rolam humildemente pelo chão.
Deixai, deixai cair uma palavra,
e outra, e outra,
os ossos do banquete,
para que me roje e as apanhe com a boca,
sendo eu menos
do que mendiga,
menos do que cadela,
sendo eu menos do que um bicho
com fome:
sendo a fome.


Hélia Correia, in Acidentes, Relógio d’Água, 2020


“Estamos doentes de abundância”

 ''sA  A Hélia afirmou numa entrevista: “Estamos doentes de abundância”. Refere-se à Europa pós-Auschwitz e ao mundo Ocidental em geral? E estamos doentes, porque na verdade essa abundância é de certa forma oca ou falsa faz algumas décadas?

HC —   A abundância é isso mesmo: o excesso. O furor de adquirir e deitar fora, o vício dos objetos, a compulsão do gasto, a ânsia das viagens em que não se conhece senão hotéis e lojas, tudo é doença do insaciável, tudo é dependência e entorpecimento. Quem pára? Poucos param. O sonho de uma vida é tomar um cocktail dentro de uma piscina. Não há maior pobreza.''


Entrevista aqui.

'' sA — O que é que nunca aprendemos de verdade, ou pelo contrário, aprendemos demasiado bem, no que concerne aos valores da Pólis? Com essa predestinação dos Gregos e da cultura helénica, com a qual tem mantido, mais do que um diálogo íntimo e continuado, um autêntico enamoramento?

HC — A grande perda com o fim da Grécia foi essa perda da diversidade de onde provinham o horror e a alegria, a dança e o flagelo, a liberdade e a superstição, a arrogância e o controlo da arrogância, a música e a fala, o espaço inteiro cheio de narrativas num constante devir. Perdeu-se, está perdido. E, no entanto, ainda amo essa Grécia, sem luto e sem distância. Ainda a tenho como Conselheira e Mestre. Vou lá todos os dias tal como os emigrantes voltam, no Verão, a casa.''


Entrevista aqui.

 

Otherwise

«Tanzt, tanzt sonst sind wir verloren»
(Dance, dance, otherwise we’re lost)


– Pina Bausch –
I

Se a dança nos salvasse, mesmo assim
dançaríamos mal e deus algum
receberia o nosso movimento.
Pois nem se a terra nos prendesse pelas mãos
como se prende um filho, de maneira
a fazê-lo voar em rotação,
com um pouco de perigo, o que subtrai
ainda mais o corpo à gravidade,
confiávamos nela.
Já perdemos
a ligação?

Podia algum de nós,
os politicamente corrigidos,
tornar-se outra vez fera,
estar na fera,
cravar na jugular da fera os dentes
em corpo a corpo, ventas contra ventas,
cheiro dentro de cheiro, exactamente
como na fúria da reprodução, apenas
indo mais longe nela,
devorando?

A dança:
o pé batia contra o solo
e, de algum modo, enraizava ali
e, de algum outro modo, se elevava
no ar sonoro, tendo de comum
isso com as aves,
como dizem que Nijinsky
tinha delas a arcada plantar.
A pele dos animais esventrados, isso
que, de sensíveis, não podemos
conceber,
colava-se nos ombros
das mulheres, colava-se a poder
de sangue seco,
parecendo, com elas, respirar.
Sacudindo a cabeça para trás,
sacudindo a cabeça, estranha coisa,
perdendo as bailarinas
o equilíbrio
que fazia o orgulho das donzelas.
Perdendo o equilíbrio indesejável.

II

«Tudo o que a dança grega nos ensina
é a nudez
nas posições terrenas,
é quebrarmos
pelo plexo solar
onde o vigor
de toda a criatura
permanece».
Isadora não disse tudo isto
mas disse parte.
Eu vejo-a a subir
com Raymond, o irmão, pelo monte Himeto,
a carregarem água e instrumentos
para a construção da casa,
que eles queriam
semelhante ao palácio de Micenas.
Raymond e Isadora, tão esmagados
pela subida, o calor e até mesmo
pelo canto das cigarras
que era dança o que deles saía
e os outros confundiam com suor.
Era essa dança de deixar bater
o joelho no chão,
de resvalar
nos torrões ressequidos, no tomilho
que feria e perfumava.

Raymond Duncan,
cunhado de Angelos Sikelianos,
por sua vez marido de Eva Palmer,
gente de consequência todos eles,
gente capaz de recriar, em Delfos,
não apenas os ritos teatrais
mas inclusivamente a confecção
do vestuário duro e vegetal
que usavam sem pudor.
Eva, Penélope,
mulheres com um tal excesso de beleza
que isso as tornava intransigentes e as punha
a salvo de ternuras comezinhas,
atacando o trabalho de tear
não por fidelidade, como a outra,
mas numa guerra à Belle Époque e ao século
que estava a começar.
Um pouco menos de dinheiro na família
e tê-los-iam internado a todos.

III

Eu, que amei Pina Bausch muito antes
do português comum,
e ouvi depois
os novos-ricos a gritarem «bravo»
contra o seu rosto onde passava tudo
o que eles não entendiam,
gostava de pedir em alemão
«Tanzt», como ela pediu.
Estive uma vez
com uma rapariga da Holanda
que fez uma audição em Wuppertal.
«Make me laugh», eis o que Pina disse.

A rapariga,
é claro,
não entrou.
Mas não falava disso com despeito.
Brilhava, tarde fora, e não devido
à chuva que caía em Amsterdão.

Brilhava e eu não sei se, como os outros,
se esqueceu, entretanto,
de dançar.


Hélia Correia, in revista Telhados de Vidro nº 18, Maio de 2013

''Não tenho motivações criativas. Tenho frases que surgem. Algumas vezes, sigo-as. Elas sabem da minha preguiça estrutural, por isso trazem tudo pronto já: género, tamanho, sobretudo música. São uns duendes que me saltam ao caminho.''

Hélia Correia

Entrevista






''Uns escrevem, outros vão para o matadouro.''

 Hélia Correia

“A terceira miséria” (Poesia, 2012)

“Um bailarino na batalha” (Romance, 2018)

“Acidentes” (Poesia, 2020)

Hélia Correia


Hélia Correia. Fotografia de Gonçalo Rosa da Silva


 ''sinalAberto — O mundo de hoje, soberbo pela ilusão da tecnologia e pela confusão do ruído, ainda tem lugar para o indizível compasso da literatura? Porquê?

Hélia Correia — Há lugar para tudo. Isso a que chamam comunicação tecnológica não passa de um avanço na massificação dos media de registo das linguagens. Quando apareceu o livro tal como o conhecemos, os alfabetizados retiraram-se da roda da lareira onde alguém transmitia as histórias orais, curvaram-se, calados, sobre as páginas e o ambiente emudeceu bastante.

Agora todos leem, e escrevem, e encurtam as palavras, coisa que já fazíamos na linguagem oral. É uma nova imprensa, acessível ao vulgo, com as duas direções verbais escancaradas: a da produção e a da receção. Ocupam muito espaço, mas, como não existe a fisicalidade, são bolas de sabão que se desfazem à pressão do botão de desligar. Pois é ainda o humano quem detém o último poder. Ninguém se queixe. A literatura não tem nada a ver com isto. O rumor que ela faz é subaquático, é preciso correr um risco para o ouvir.''


Entrevista aqui.

 Hélia Correia:

“hoje já não se morre de civilização”, e que não há maior pobreza” quando “o sonho de uma vida é tomar um cocktail dentro de uma piscina”.

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