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domingo, 13 de setembro de 2015


"Uma rapariga loura está inclinada sobre um poema. Com o bisturi de um lápis afiado transfere as palavras para uma folha branca e converte-a em acentos, cadências, cesuras. O lamento de um poeta caído assemelha-se agora a uma salamandra devorada por formigas.

Quando o levámos sob o fogo das metralhadoras eu pensei que o seu corpo ainda quente ressuscitaria nas palavras. Agora que vejo a morte das palavras, sei que não há limites para o declínio. Tudo o que deixaremos atrás de nós sobre a terra escura serão sílabas dispersas.
Acentos sobre o pó e o nada."

-"Uisses Já Não Mora Aqui"
- José Miguel Silva 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

SO GOODNIGHT
Não posso dizer que tenha aprendido grande coisa
nos últimos, digamos, duzentos anos.
Há muitas perguntas que vão perdendo altura
à medida que as penas tombam e também
as garras já não prendem como soíam.
Depois de ter visto de que palha são enchidos
os príncipes felizes, já não saio de casa
sem levar comigo uma carteira de fósforos.
Agora tenho mais tempo morto, só de cinco
em cinco anos compro uma pilha nova
para o relógio. Em vez de cortar os pulsos
cortei a linha do telefone. Já não acordo de noite
para lhe perguntar porque não tocas.
E o que mais me custa, no fim de contas,
é dar razão a Confúcio quando afirma:
quanto mais te ergues para Deus mais ele
de ti se afasta, deixando-te sozinho
a arrumar a casa. Mas estes chineses,
na filosofia moral como no ténis de mesa,
acabam sempre por levar a taça,
e por esta altura da minha queda já concedo
que seja o silêncio a condição natural
para uma ave sem nome que Setembro chamou
e que há duzentos anos não aprende nada.

José Miguel Silva
Walkmen, & etc, Dezembro de 2007, Lisboa.

segunda-feira, 24 de março de 2014

LADRÕES DE BICICLETAS — VITTORIO DE SICA (1948)


Mil quilómetros por dia pedalava meu pai, desde
a cama junto ao Douro até à próspera Cerâmica
de Valadares. Se qualquer homem recebe,
à nascença, uns sessenta inimigos por hora,
imaginem a jornada de um operário ciclista.
Tudo são despesas para ele: o rosário de geada
nas giestas, o jornal atropelado pelo vento, o verdor
da Primavera, a poalha do suor em cada mão.

Meu pai, é claro, não se queixa, ganha um conto
de réis, tem uma casa portuguesa e grandes sonhos
de amanhãs a gasolina. Pelo menos não trabalho
em nenhum matadouro, pensa ele, e com razão,
erguido nos pedais do seu veículo de sombra,
solitário trepador pela encosta de Avintes. Não
trabalha em nenhum matadouro. E nesse reconforto
passa à Quinta dos Frades, alcança o Freixieiro,
sente já o rumor de fumacentos camiões na nacional,
onde tudo, depois, será muito mais plano.

- JOSÉ MIGUEL SILVA
in 'Telhados de Vidro' n.º 4, Lisboa, Averno, Maio de 2005.
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