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terça-feira, 6 de setembro de 2011

«Um escritor, mesmo parecendo ter um coração de pedra,
precisa de cuidados.»



John Updike. Ponto Último e outros poemas. Tradução de Ana Luísa Amaral. Civilização Editora, Porto, 2009., p. 21

*

A minha mulher ausente um dia ou dois.
Acordo mais gasto e só, a tempestade que me
envelheceu: destilada numa pele de neve do passado,
um cobertor tão fino que por ele se vêem folhas de erva.
Ali, atrás dos teixos, a neve faz sombras brancas,
dissolve-se no beijo oblíquo do sol e espalha-se
ao longo do relvado, como se dissesse:
Dá-me uma hora mais, e eu partirei depois.


John Updike. Ponto Último e outros poemas. Tradução de Ana Luísa Amaral. Civilização Editora, Porto, 2009., p. 13

domingo, 23 de janeiro de 2011

O FOGO NÃO É UM CONVIDADO AMÁVEL

          Eu era encarregado de um manicómio, pois estava louco.
          Chegou um fogo, que ficou esfomeado; por isso eu disse podes comer um toro, mas não subas as escadas e não comas uma dementia praecox.
          Eu disse, doidos, ide para o sótão enquanto um fogo come uma cadeira de cozinha ao pequeno-almoço.
          Mas o fogo queria uma cortina da cozinha, que comeu e trepou ao mesmo tempo, e depois foi para o tecto comer um caibro.
          Eu disse, se tens tanta fome come um caibro, mas não comas um maníaco.
          Entretanto, um maníaco no sótão, com um machado, começou a atacar o céu.
          Vais provocar chuva, é o que vais fazer, disse eu, feri-lo até que chova.
           O fogo, estava a comer uma senhora idosa. Eu disse, uma senhora idosa, vá lá, e uma criança para sobremesa.
          Eu disse ao fogo que podia dormir a sesta na cama do maníaco. Mas o fogo queria comer a cama. Estás muito esfomeado, fogo, disse eu.
           Mas, por essa altura toda a família do fogo já tinha entrado e estava a comer os cantos do manicómio - Eh, é aí onde os mortos construíram as suas cidades.
          Mas os fogos não queriam ouvir porque não gostam de passar fome.
          Por isso pedi aos lunáticos que saíssem do sótão e disse-lhes que era uma guerra de nutrição, e que deviam comer o fogo senão ele os comeria.
          Mas eles disseram, nós não somos comedores de fogo, somos engolidores de espadas...
 
 
 
Russell Edson. O Túnel. Selecção e tradução de José Alberto Oliveira Assírio& Alvim, Lisboa, 2002, p. 19-21
«Todas as mulheres da casa observam pelas janelas, esperando para ver o que farei.
  Pai, observa o orvalho nas suas rodas, não te recorda lágrimas?
  Irás destroçar o meu coração enquanto as mulheres vigiam, quase esperando que eu ceda? pois elas anseiam pela vítima que me seria amável entregar.»
 
 
 
Russell Edson. O Túnel. Selecção e tradução de José Alberto Oliveira Assírio& Alvim, Lisboa, 2002, p. 13-15

The Difficulty with a Tree

A woman was fighting a tree. The tree had come to rage at the woman’s attack, breaking free from its earth it waddled at her with its great root feet.
         Goddamn these sentiencies, roared the tree with birds shrieking in its branches.
         Look out, you’ll fall on me, you bastard, screamed the woman as she hit at the tree.
         The tree whisked and whisked with its leafy branches.
         The woman kicked and bit screaming, kill me kill me or I’ll kill you!

         Her husband seeing the commotion came running crying, what tree has lost patience?
         The ax the ax, damnfool, the ax, she screamed.
         Oh no, roared the tree dragging its long roots rhythmically limping like a sea lion towards her husband.
         But oughtn’t we to talk about this? cried her husband.
         But oughtn’t we to talk about this, mimicked his wife.
         But what is this all about? he cried.
         When you see me killing something you should reason that it will want to kill me back, she screamed.

         But before her husband could decide what next action to perform the tree had killed both the wife and her husband.
         Before the woman died she screamed, now do you see?
         He said, what...? And then he died.




Russell Edson, “The Difficulty with a Tree”© Source: The Clam Theater (Wesleyan University Press, 1973)

The Unforgiven

After a series of indiscretions a man stumbled homeward, thinking, now that I am going down from my misbehavior I am to be forgiven, because how I acted was not the true self, which I am now returning to. And I am not to be blamed for the past, because I’m to be seen as one redeemed in the present...
         But when he got to the threshold of his house his house said, go away, I am not at home.
         Not at home? A house is always at home; where else can it be? said the man.
         I am not at home to you, said his house.

         And so the man stumbled away into another series of indiscretions...


''O riso foi sempre próprio dos deuses, porque se supõe que eles conhecem não só o nosso desamparo, como o desamparo que lhes é próprio - ou como, noutra ocasião, escreveu Edson «o sentido de humor é o verdadeiro sentido do trágico».''


Russell Edson. O Túnel. Selecção e tradução de José Alberto Oliveira Assírio& Alvim, Lisboa, 2002, p. 7

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

'as minhas outras duas irmãs, as mais velhas'

«Segundo o meu papá, elas tinham-se deitado a perder porque éramos muito pobres lá em casa e elas eram muito respondonas. Desde pequeninas que já eram resmungonas. E assim que lhes cresceram deu-lhes para andar com homens do piorio, que lhes ensinaram coisas más. Elas aprenderam depressa e percebiam muito bem os assobios, quando as chamavam a altas horas da noite. Depois saíam até de dia. Iam a toda a hora buscar água ao rio e às vezes, quando uma pessoa menos esperava, ali estavam elas no curral, rebolando-se no chão, todas despidas e cada uma com um homem em cima.
   Então o meu papá correu com as duas. Primeiro aguentou-lhes tudo o que pôde; mas um dia já não pôde aguentá-las mais e deu-lhes saída para a rua. Elas foram para Ayutla ou não sei para onde; e aí andam como putas.»




Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 166
   «Não consigo perceber porque é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.
    E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
    Bramou só Deus sabe como.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 164/5
«O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e, no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 163
«Devia estar bêbado. Pôs-se à minha frente e bamboleava-se de um lado para o outro, tapando-me e destapando-me a luz que eu precisava da lua.
- Andar com rodeios não é bom - disse-me depois de um bom bocado.- Eu gosto das coisas direitas, e se tu não gostas, sofres as consequências, porque eu vim aqui para as endireitar.
   Eu continuei a remendar o meu saco. Só tinha olhos para lhe coser os buracos, e a agulha de albarda trabalhava muito bem quando a alumiava a luz da lua. De certeza que foi por isso que achou que eu não me preocupava com o que ele dizia:
 - Estou a falar contigo - gritou-me, agora sim já irritado. - Bem sabes ao que vim.
   Espantei-me um pouco quando se aproximou de mim e me gritou aquilo quase à queima-roupa. No entanto, tentei ver-lhe a cara para saber de que tamanho era a sua fúria e continuei a fixá-lo, como que a perguntar-lhe ao que tinha vindo.
   Isso resultou. Já mais calmo, saiu-se com esta: que as pessoas como eu têm de se apanhar desprevenidas.
  - Seca-se-me a boca por te estar falando depois do que fizeste - disse-me; - mas era tão meu amigo o meu irmão como tu e só por isso vim ver-te, a ver como esclareces a morte de Odilón.
    Eu já o ouvia muito bem. Pus de lado o saco e fiquei a ouvi-lo sem fazer mais nada.»



Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 157/158
«Lembro-me de antes, quando os Torricos também vinham aqui sentar-se e ficavam acocorados horas e horas até ao escurecer, olhando para o longe sem se cansarem, como se este lugar lhes sacudisse os pensamentos ou a vontade de irem passear a Zapotlán. Só depois soube que não pensavam isso. Unicamente se punham a olhar o caminho: aquela larga azinhaga arenosa que se podia seguir com o olhar desde o começo até que se perdia entre os pinheiros do cerro da Media Luna.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 153
      «Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança.
    Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 145

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

«O amarrador de Chihuahua recolheu o seu galo maltratado. Soprou-lhe o bico para o descongestionar e tentou que o animal se aguentasse nas patas. Mas ao ver que voltava a cair enroscado, como uma bola de penas, disse:
- Não há mais remédio senão liquidá-lo.
E já estava disposto a torcer-lhe o pescoço quando Dionisio Pinzón se atreveu a contê-lo:
- Não o mate - disse-lhe. - Pode curar-se e servirá, nem que seja para criação.
O de Chihuahua riu, trocista, e atirou o galo a Dionisio Pinzón como quem se desfaz de um trapo sujo. Dionisio alcançou-o, apanhando-o em pleno voo. Aconchegou-o nos seus braços com cuidado, quase com ternura e retirou-se com ele da cercadura.
Ao chegar a casa, fez um buraco debaixo da telha vã e, auxiliado pela mãe, enterrou ali o galo, deixando-lhe apenas a cabeça de fora.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 310
« O galo branco revelou-se «franganote». Aceitou lutar ao ser acareado; porém, já solto na linha, perante as primeiras investidas do dourado, encolheu-se para um canto. E ali se ficou, a cabeça agachada e as asas murchas como se estivesse doente. Ainda assim, o galo dourado foi até onde o galo branco estava à procura da luta; as penas do pescoço levantadas e as patas a pisarem, maciças, a cada passo que dava à volta do galo cobarde. O «franganote» encolheu-se ainda mais na vala, reflectindo cobardia e, principalmente, tenções de fugir. Porém, ao ver-se cercado pelo galo de Chihuahua, deu um salto, tentando livrar-se das investidas do dourado e foi cair sobre o espinhaço cor de girassol do seu inimigo. Bateu com as asas com força para manter o equilíbrio e por fim conseguiu, ao querer libertar-se do enlace em que tinha caído, romper com a afiada navalha do seu esporão uma asa do dourado.
O fino galo de Chihuahua, manco, atacou sem misericórdia o «eriçado», que se retirava para o seu canto a cada investida; mas fazia uso do seu meio-voo ao sentir-se cercado. E assim, uma e outra vez, até que, não conseguindo resistir à sangria da sua ferida, o dourado cravou o bico, estendendo-se sobre o piso da cercadura sem que o branco fizesse a menor menção de o atacar.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 309
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