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quarta-feira, 13 de março de 2024

[ CANÇÃO DE BATER NO CHÃO ]

 Nasce o sol trabalhamos
Põe-se o sol descansamos.
Cavamos um poço para beber,
Lavramos um campo, p'ra comer:
O Imperador e o seu poder
- Queremos lá saber!


Autoria: anónimo c. 1000?

Uma Antologia de Poesia Chinesa. Gil de Carvalho. Assírio & Alvim, Lisboa, 1989, p. 49

Rapaz Raposa

Este rapaz feiticeiro
Desdenha falar comigo
Sim é por causa dele, Senhor
Que deixo a comida no prato.

Este rapaz raposa
Comigo comer não quer
Sim é por causa dele
Que já descanso não tenho


Shijing


Uma Antologia de Poesia Chinesa. Gil de Carvalho. Assírio & Alvim, Lisboa, 1989

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

CREPÚSCULO DE INVERNO

 Para Max von Esterle
Negro céu de metal.
A flutuar, atravessam tempestades vermelhas,
De noite, as gralhas enlouquecidas de fome,
Lívidas, sob o relvado do parque.

Nas nuvens, congela um raio até morrer;
E, ante as maldições de Satanás, contorcem-se
As gralhas em sete círculos e 
Descem sete vezes.

Na podridão, doce e sem sabor,
Aparam, em silêncio, os seus bicos.
Ameaçam casas das paragens em redor;
Claridade no teatro.

Igrejas, pontes e o hospital,
Horríveis de ver, de pé, ao crepúsculo.
Telas de linho manchadas se sangue,
Velas que incham ao vento no canal.


Georg Trakl. Poemas. Tradução e Prefácio António de Castro Caeiro. Editora Abysmo., p. 25

domingo, 3 de dezembro de 2023

 Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares, já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses


se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente.
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?


Ruy Belo

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Queixa das almas jovens censuradas

 

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte


Natália Correia

domingo, 4 de dezembro de 2022

Adeus

 

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Do milénio

Porque havemos de respirar o ar lavado e quente de Novembro,
se esperámos o Inverno,
se o sangue dos nossos pulmões amou o
gelo galáctico outrora, antes de sermos?
A flor, como um suicida, nasceu e imola-se,
porque não ama o belo, o agreste Inverno.
Mas nós, que concebemos o amor e o tempo,
iremos dar a nossa respiração ao Incerto?

Os amigos que morrem


Os amigos que morrem são arbóreos,
plantados e memoráveis como freixos.
Um freixo, que vejo entre árvores
como a aura, o tronco novo
sulcado de rasgões, a raiz curta
comparável à memória viva enterrada.
Têm uma única forma até à morte, próximos do Sol,
que torna as outras árvores mais ténues que os isolados freixos.

quinta-feira, 18 de novembro de 2021


Acho uma moral ruim

Trazer o vulgo enganador:

mandarem fazer assim

e eles fazerem assado


Sou um dos membros malditos

dessa falsa sociedade

que, baseado nos mitos,

pode roubar à vontade


Esses por quem não te interessas

Produzem quanto consomes

Vivem das tuas promessas

Ganhando o pão que tu comes


Não me dêem mais desgostos

Porque sei raciocinar ...

Só os burros estão dispostos

a sofrer sem protestar!


Esta mascarada enorme

com que o mundo nos aldraba,

dura enquanto o povo dorme,

quando ele acordar, acaba.


Poeta António Aleixo

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

 Quando a tempestade passar,

as estradas se amansarem,
E formos sobreviventes
de um naufrágio coletivo,
Com o coração choroso
e o destino abençoado,
Nós nos sentiremos bem-aventurados
Só por estarmos vivos.

E daremos um abraço ao primeiro desconhecido,
E elogiaremos a sorte de manter um amigo.

E aí vamos lembrar tudo aquilo que perdemos, e de uma vez aprenderemos tudo o que ainda não aprendemos.

Não teremos mais inveja, pois todos sofreram.
Não teremos mais o coração endurecido,
Seremos todos mais compassivos.

Valerá mais o que é de todos do que o que eu nunca consegui.
Seremos mais generosos
E muito mais comprometidos.

Nós entenderemos o quão frágeis somos, e o que 
significa estarmos vivos!
Vamos sentir empatia por quem está e por quem se foi.

Sentiremos falta do velho que pedia esmola no mercado, cujo nome nunca soubemos, e que sempre esteve ao nosso lado.

E talvez o velho pobre fosse Deus disfarçado...
Mas você nunca perguntou o nome dele,
Porque estava com pressa...

E tudo será milagre! 
E tudo será um legado,
E a vida que ganhamos será respeitada!

Quando a tempestade passar, 
Eu vos peço, Deus, com tristeza ,
Que nos torneis melhores, como nos sonhastes.

(K. O ' Meara - Poema escrito durante a epidemia de peste em 1800)

quinta-feira, 1 de julho de 2021

 X

Eu não sou deste mundo. Então de qual
Planeta absurdo me acontece a vida
Que o carimbo me põe de original
E a minha estrela dá como perdida?

Pelo condão de um humor filosofal
Do estranho estado me finjo distraída.
Num hífen entre o nada e o ideal
Hasteio a farsa da coisa conseguida.

Estranheza de ser. De agoniado
Espanto sou feita num sonho naufragado.
Tempo emprestado com um astro louco ao fundo.

Sitiada por trevas não descanso
De indagar minha essência e só me alcanço
Na loucura de não ser deste mundo.

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 321

 VI


Vem do mais recôndito concerto
Uma íntima voz que me confunde.
Alguém em mim invade-me e desperto
Noutro ser que subtil em mim se infunde.

E eu sou todavia longe e perto
Buscando a luz que a unidade funde
De contrários perfis. Só o deserto
De em nenhum rosto achar-me me responde.

À sombra erma de uma razão longínqua
Narro-me e não me encontro. Que hora ubíqua
De mim busca me rapta e em mim estou?

Una e fendida par a par me vergo
À saudade de mim e nada enxergo
Salvo o diverso ser de ser quem sou.

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 317

 A ALMA


Votada ao fogo obediente ao perigo
feroz do amor ser muito e o tempo pouco,
Chegas ébrio de sonho, ó estranho amigo
E eu não sei se por mim és anjo ou louco.

Num beijo infindo queres morrer comigo.
Nesse extremo és sagrado e eu não te toco.
Esquivo-me: o teu sonho mais instigo.
Fujo-te: a tua chama mais provoco.

A incêndio do teu sangue me condenas
E com ciumentas ervas te envenenas
Dizendo às nuvens que só tu me viste.

Bebendo o vinho de amantes mortos queres
Que eu seja a mais prateada das mulheres.
E de ser tão amada e eu fico triste.


Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 310

terça-feira, 29 de junho de 2021

II

No coração da ilha está um vaso
Cheio das pérolas que p'ra mim sonhaste.
Ó mãe completa da manhã ao ocaso.
Pastora dos meus sonhos, minha haste.

Parti p'ràs Índias do meu estranho caso
- ó danos que dos versos sois o engaste! -
E com maus fados se entendem ao acaso
Lírios e feras do meu verso vão contraste.

Ave exausta, o retorno quem me dera,
Vou ao canto dos órfãos soletrando
O âmbar da manhã que ali me espera.

Feridas asas, enfim ali fechando
Ao pasto e à onda me unirei sincera,
Ilha no manso azul da mãe esperando.

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 301

domingo, 27 de junho de 2021

 NO TEMPLO DE FLORBELA-DIANA,

          A CASTRADORA


À noite, em erma torre, um tigre aos pés,
Penteia-se Florbela. Ardentes velas
Citam-lhe a alma gémea do maltês
Coberta da poeira das estrelas.

O templo a chama. Venérea e mediúnica
Vai ao serviço em que a tem a lua:
Corça da deusa que lhe pede a túnica,
O luar a descasca e fica nua.

Sua carne de murta langorosa 
Espalha na noite espasmos perfumados.
Nessa nuvem lunática e cheirosa
Castram-se efebos em eiras e montados.

E da mutilação, sangrando a oferenda,
Levam-na, castos, ao templo de Diana
Onde em veados os transforma a lenda
De Florbela, a Artemisa alentejana.


Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 271

domingo, 13 de junho de 2021

BALADA DE UMA FAIA DONZELA
QUE MORREU VIOLADA

                                        Ao Dórdio, curador de árvores 

Foi de morte, foi de noite:
ávido vento venéreo
veio com cio no açoite
praticar estupro funéreo.

Alísio não. De alisado
nada tinha. De suão
isso sim porque abrasado
vinha e era vento machão.

Era uma faia menina,
ainda mal deitava busto.
Em botânica genuína
seria antes um arbusto.

Sua etérea ramaria
era vernal, sendo verão.
Tão novinha e já fazia
recuar a poluição.

Mas se chegara a frondosa,
a julgar pelo seu viço,
seria noticiosa
árvore do paraíso.

Eis que vendaval varão
vem do sul em turbulência
consumar violação
em tenrinha arborescência.

Em ásperos viciosos dedos
é a pureza desmanchada.
Dá a faia gritos verdes.
Quem a ouve na rajada?

Por vento violador 
a beleza trespassada!
E mesmo antes de dar flor
foi a faia desflorada.

Suas tranças em pisado
folhedo desfeitas estão.
E foi-se o vento amainado
depois de tê-la no chão.

Ó que sinais de martírio
vão os varredores varrer! 
Para árvore de Porfírio
estava ali ela a crescer.

Que esmaiado sentimento!
ver uma faia donzela
morrer violada pelo vento
em frente à minha janela.











Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 216/7

domingo, 6 de junho de 2021

    UMA LARANJA
PARA ALBERTO CAEIRO


Venho simplesmente dizer
que uma laranja é uma laranja
e comove saber que não é ave

se o fosse não seriam ambas
uma só coisa volátil e doce
de que a ave é o impulso de partir
e a laranja o instinto de ficar.


Não sei de nada mais eterno
do que haver sempre uma só coisa
e ela ser muitas diferentes
e cada coisa ternamente ocupar
só o espaço que pode rodeada
pelo espaço que a pode rodear.


Sei que depois da laranja
a laranja poderá ser até
mesmo laranja se necessária
mas cada vez que o for
sê-lo-á rigorosamente
como se de laranja fosse
a exacta fome inadiável.


De ser laranja gomo a gomo
o íntimo pomo se enternece
e não cabe em si de amor
embriagada de saber
que a sua morte nos será doce.


Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 132/3


A ARTE DE SER AMADA

Eu sou líquida nas recolhida
no íntimo estanho de uma jarra
e em tua boca um clavicórdio
quer recordar-me que sou ária

aérea vária porém sentada
perfil que os flamingos voaram.
Pelos canteiros eu conto os gerânios
de uns tantos anos que nos separaram.

Teu amor de planta submarina
procura um húmido lugar.
Sabiamente preencho a piscina
que te dê o hábito de afogar.

Do que não viste a minha idade
te inquieta como a ciência
do mundo ser muito velho
três vezes por mim rodeado
sem saber da tua existência.

Pensas-me a ilha e me sitias
de violinos por todos os lados
 e em tua pele o que eu respiro
é um ar de frutos sossegados.


Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 129

domingo, 30 de maio de 2021

 V

Toma o meu corpo transparente
no que ultrapassa tua exigência taciturna.
Dou-me arrepiando em tua face
uma aragem nocturna.
Vem contemplar nos meus lhos de vidente
a morte que procuras
nos braços que te possuem para além de ter-te.

Toma-me nesta pureza com ângulos de tragédia.
Fica naquele gosto a sangue
que tem por vezes a boca da inocência.


Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 50
Turva hora onde
Principia a noite
E o dia se esconde.

Hora de abandonos
Em que a gente esquece
Aquilo que somos
E o tempo adormece.

Nevoenta hora,
Hora de ninguém
Em que a gente chora
Não sabe por quem.

E tudo se esconde
Nessa hora onde
Por estranha magia
Brilha o sol de noite
E o luar de dia.

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 33

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