Mostrar mensagens com a etiqueta poesia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta poesia. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 13 de março de 2024

Rapaz Raposa

Este rapaz feiticeiro
Desdenha falar comigo
Sim é por causa dele, Senhor
Que deixo a comida no prato.

Este rapaz raposa
Comigo comer não quer
Sim é por causa dele
Que já descanso não tenho


Shijing


Uma Antologia de Poesia Chinesa. Gil de Carvalho. Assírio & Alvim, Lisboa, 1989

sexta-feira, 8 de março de 2024

 Nome

Gosto da fome
com que me come
E do desespero
com que me devora
E como no meu corpo
goza
do meu corpo
goza
com meu corpo
goza

Gosto da sua boca sôfrega
Perdida na minha
língua trôpega
Numa dança descompassada

Não diga que estou errada
que em sua direção
meu passo é curto
Se dou dois para trás
é porque já todos
meus sentidos consome

Vê:
meu surto
tem seu nome


Ao Sabor da Maré

sobe a maré
quase ilhada,
já sei:
nenhuma fuga seca
é possível
nenhum esboço de caminho
a cada passo
mais pesados
meus pés marcados
pelo afogamento temo,
mas sigo
Mato-me ou vivo?


Mar e Som

Do teu nome emergem
Mar e Som

Marulham nas águas
do meu corpo as ondas
da tua rebentação
Meus olhos mareados
encontram sempre a ressaca
dos teus transbordantes
                – quando estamos em Alto-Mar
                e tudo é infinito horizonte
                de maresia e nossos ais

Teu nome
de Mar e Som
imerso imenso
em meu oceano de silêncio
e turbulências abissais


Renata de Castro

domingo, 3 de dezembro de 2023

 Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares, já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses


se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente.
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?


Ruy Belo

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022


pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória… amas
ou finges morrer


pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas


é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves


já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

**********

escrevo-te
pelo corpo sinto um arrepio uma vertigem
que me enche o coração de ausência pavor e saudade
teu rosto é semelhante à noite
a espantosa noite do teu rosto!
corri para o telefone mas não me lembrava do teu número
queria apenas ouvir tua voz
contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou
queria dizer-te por que parto
por que amo
ouvir-te perguntar quem fala?
e faltar-me a coragem para responder e desligar
depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa
a noite tornou-se patética sem ti
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr para a rua
procurar-te imediatamente
correr a cidade duma ponta a outra
só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te
e morrer
como quando me tocaste na testa e eu não pude reconhecer-te
apesar de tudo senti a mão sábia que era a tua mão
mas não podia reconhecer-te
sim
correr a cidade procurar-te mesmo que me afastasses
mesmo que nem me olhasses
mesmo que dissesses coisas que me
mesmo que
e ter a certeza de que serias tu depois a procurar-me.

**********

A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

domingo, 4 de dezembro de 2022

Adeus

 

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022


Depois de traduzir Hélène Dorion

Amar o universo não me traz mágoa.
sobretudo, amar a areia arrebata-me de júbilo e paixão.
Amar o mar completa a minha vida com o tacto de um amor imenso.
Mas veio o vento e, por momentos, amargurou o meu corpo, a oscilar.
E está o Sol aqui, depois de uns dias com o jardim obscurecido a beber sombra.
E sei que os átomos zumbem e dançam como os insectos, ébrios em redor do pólen.

Os amigos que morrem


Os amigos que morrem são arbóreos,
plantados e memoráveis como freixos.
Um freixo, que vejo entre árvores
como a aura, o tronco novo
sulcado de rasgões, a raiz curta
comparável à memória viva enterrada.
Têm uma única forma até à morte, próximos do Sol,
que torna as outras árvores mais ténues que os isolados freixos.

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

 ''Grades da Língua''


[...] (Se eu fosse como tu, se tu fosses como eu.
Não estivemos
sob um alísio?
Somos estranhos.)


Os ladrilhos. Em cima,
muito juntas, as duas 
poças cinzento-coração:
duas
baforadas de silêncio.

Paul Celan

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

 Quando a tempestade passar,

as estradas se amansarem,
E formos sobreviventes
de um naufrágio coletivo,
Com o coração choroso
e o destino abençoado,
Nós nos sentiremos bem-aventurados
Só por estarmos vivos.

E daremos um abraço ao primeiro desconhecido,
E elogiaremos a sorte de manter um amigo.

E aí vamos lembrar tudo aquilo que perdemos, e de uma vez aprenderemos tudo o que ainda não aprendemos.

Não teremos mais inveja, pois todos sofreram.
Não teremos mais o coração endurecido,
Seremos todos mais compassivos.

Valerá mais o que é de todos do que o que eu nunca consegui.
Seremos mais generosos
E muito mais comprometidos.

Nós entenderemos o quão frágeis somos, e o que 
significa estarmos vivos!
Vamos sentir empatia por quem está e por quem se foi.

Sentiremos falta do velho que pedia esmola no mercado, cujo nome nunca soubemos, e que sempre esteve ao nosso lado.

E talvez o velho pobre fosse Deus disfarçado...
Mas você nunca perguntou o nome dele,
Porque estava com pressa...

E tudo será milagre! 
E tudo será um legado,
E a vida que ganhamos será respeitada!

Quando a tempestade passar, 
Eu vos peço, Deus, com tristeza ,
Que nos torneis melhores, como nos sonhastes.

(K. O ' Meara - Poema escrito durante a epidemia de peste em 1800)

terça-feira, 29 de junho de 2021

«De uma névoa lilás e lua sai
E quebra-se no mar sem se mover.»

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 305

 V

Nessa manhã as garças não voaram
E dos confins da luz um deus chamou.
Docemente teus cílios se fecharam
Sobre o olhar onde tudo começou.

A terra uivou. Todas as cores mudaram
O mar emudeceu. O ar parou.
Escuros véus de pranto o sol taparam.
De azáleas lívidas a ilha se cercou.

A que pélago o esquife te levava?
Não ao termo. A não chorar os mortos.
Teu sumo espiritual florido ensina.

E se o mundo em ti principiava,
No teu mistério entre astros absortos,
Suavemente, ó mãe, tudo termina.


Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 304
«Dentro da música a casa repousava.
Minha mãe docemente penteava
Os meus cabelos e caíam pérolas.»

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 302

II

No coração da ilha está um vaso
Cheio das pérolas que p'ra mim sonhaste.
Ó mãe completa da manhã ao ocaso.
Pastora dos meus sonhos, minha haste.

Parti p'ràs Índias do meu estranho caso
- ó danos que dos versos sois o engaste! -
E com maus fados se entendem ao acaso
Lírios e feras do meu verso vão contraste.

Ave exausta, o retorno quem me dera,
Vou ao canto dos órfãos soletrando
O âmbar da manhã que ali me espera.

Feridas asas, enfim ali fechando
Ao pasto e à onda me unirei sincera,
Ilha no manso azul da mãe esperando.

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 301

domingo, 27 de junho de 2021

«Morte, ladra de amantes, não me leves
O ombro em que de insónias repousava.
Nesse abrigo o amor com dedos leves
Fazia a concha que me agasalhava.»

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 279

«Algures nessa viagem vim virgem de outras eras
Ser violada ao luar num festim de panteras.
Vida! de quantas vidas tiras o mel e o limo
Acomodando inúmeras almas a um só destino.»

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 277
«Pactuam as estrelas com larvas e minérios
E rendo a alma à hora própria dos sortilégios.
Um afã de prenúncios voa em redor das lâmpadas,
As brasas dão sinais e queimo as ervas santas.»

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 276

(...)

«Alta e branca. Artemisa entra no mar e desata
A trança. Boiam na água seus cabelos de prata;
E a sombra num odor branco por jasmins a brotar
Escorre para os brilhos silenciosos do mar.»

Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 272

 NO TEMPLO DE FLORBELA-DIANA,

          A CASTRADORA


À noite, em erma torre, um tigre aos pés,
Penteia-se Florbela. Ardentes velas
Citam-lhe a alma gémea do maltês
Coberta da poeira das estrelas.

O templo a chama. Venérea e mediúnica
Vai ao serviço em que a tem a lua:
Corça da deusa que lhe pede a túnica,
O luar a descasca e fica nua.

Sua carne de murta langorosa 
Espalha na noite espasmos perfumados.
Nessa nuvem lunática e cheirosa
Castram-se efebos em eiras e montados.

E da mutilação, sangrando a oferenda,
Levam-na, castos, ao templo de Diana
Onde em veados os transforma a lenda
De Florbela, a Artemisa alentejana.


Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 271

sábado, 26 de junho de 2021

«O lótus é o umbigo
Do mistério pai e mãe dos deuses.»


Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 270

domingo, 6 de junho de 2021

    UMA LARANJA
PARA ALBERTO CAEIRO


Venho simplesmente dizer
que uma laranja é uma laranja
e comove saber que não é ave

se o fosse não seriam ambas
uma só coisa volátil e doce
de que a ave é o impulso de partir
e a laranja o instinto de ficar.


Não sei de nada mais eterno
do que haver sempre uma só coisa
e ela ser muitas diferentes
e cada coisa ternamente ocupar
só o espaço que pode rodeada
pelo espaço que a pode rodear.


Sei que depois da laranja
a laranja poderá ser até
mesmo laranja se necessária
mas cada vez que o for
sê-lo-á rigorosamente
como se de laranja fosse
a exacta fome inadiável.


De ser laranja gomo a gomo
o íntimo pomo se enternece
e não cabe em si de amor
embriagada de saber
que a sua morte nos será doce.


Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 132/3


Powered By Blogger