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domingo, 27 de fevereiro de 2011

Acto de União

I

Esta noite, um primeiro abalo, latejante
Como se a chuva no pântano engrossasse
Pr'a fluir e alargar: uma explosão,
Um rasgão abrindo o leito vegetal.
O teu dorso é a costa leste, linha firme,
Braços e pernas lançadas para lá
Do teu relevo gradual. Acaricio
A província arquejante onde cresceu o nosso passado.
Sou o reino que por detrás de ti se eleva,
Que não queiras seduzir nem ignorar.
A conquista é uma mentira. Envelheço
Concedendo-te uma meia independência,
Território em que agora o meu legado
Tem o seu ponto culminante, inexorável.

II

E permaneço no aprumo imperial
Do macho - deixando-te com o sofrimento,
A colónia a ser dilacerada,
O ariete, e a explosão vinda de dentro.
A quinta coluna que do acto nasceu
É obstinada e tem o olhar unilateral.
O seu coração ao lado do teu
É um tambor chamando p'rá batalha. E já
Os pequenos punhos, parasitas, ignaros,
Te batem às fronteiras, me ameaçam
Por sobre a água. Nenhum tratado
Poderá o teu corpo marcado sarar,
Estriado, em carne viva com a dor
Que te faz solo rasgado, de novo.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.143

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A Apanha das Amoras

Para Philip Hobsbaum


Por fins de Agosto, com chuva forte e sol
Toda uma semana, amadureciam as amoras.
A princípio, uma só, luzidio coágulo púrpura
Entre outras, rubras, verdes, duras como um nó.
Comia-se a primeira e era carnuda e doce
Como vinho fermentado: era o sangue do Verão
Tingindo-nos a língua com o desejo de as
Colher. Escureciam então as vermelhas, e essa fome
Levava-nos com canecas, latas, boiões
Onde as silvas arranhavam e erva húmida
Polia as botas. Por prados, lameiros e searas
Seguíamos na apanha até enchermos as vasilhas,
Até que o seu fundo tilintante se cobria
Com as verdes, e por cima borrões negros reluziam
Como um prato de olhos. Picados de espinhos
Ardiam-nos nas mãos, tão pegajosas
Como as do Barba-Azul.

Guardávamos as bagas frescas no curral.
Mas mal a dorna enchia lhe víamos uma penugem,
Um fungo cinza-rato devorando-nos o tesouro.
Também o sumo estava pestilento. Mal o colhíamos,
Fermentava o fruto, azedava a doce carne.
Apetecia-me chorar. Não era justo
Que tanto deleite fosse agora podridão.
Ano a ano esperava conservá-las,
Sabendo bem que não.


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.41
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