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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Ternura deslocada

 
  Plutarco na sua vida de Sólon, nota que a grande maioria das pessoas cujos corações estão quer por natureza quer por artifício fechados aos sentimentos ternos inspirados por afectos de qualquer espécie foi observada a conceder os seus sentimentos a objectos absolutamente indignos e desprezíveis. Esta teoria pode ser adequadamente ilustrada e confirmada pelos que amam apaixonadamente animais e raramente ganharam reputação de filantropos; e embora este não passe de um leve assunto de especulação, ainda assim oferece tantos exemplos que não deveria passar despercebido num trabalho que professe tratar não tanto de questões sérias quanto de questões leves de um modo sério.
   Lord Lytton, citando M. Georges Duval, diz-nos que a afeição por animais era um traço distintivo dos heróis sangrentos da Revolução Francesa. Couthon, ouvimos, estava grandemente preso a um spaniel que invariavelmente levava ao colo para a Convenção; Chaunette devotava as suas horas vagas a um aviário; Founier levava aos ombros um esquilo preso por uma cadeia de prata; «Panis mostrava a maior ternura por dois faisões dourados; e Marat, que não descontaria uma das três mil cabeças que pedia, criava pombas.» Billaud, diz Lord Macaulay, entretinha as horas solitárias dos seus últimos dias ensinando papagaios a falar.
   «A propósito do spaniel de Couthon, Duval dá-nos uma anedota divertida de Sergent, um dos não menos implacáveis agentes do massacre de Setembro. Uma senhora veio implorar a sua protecção para um dos parentes dele encarcerado na Abbaye. Quase não condescendeu em falar à senhora. Quando em desespero ela se retirava, pisou por acidente a pata do favorito spaniel. Sergent, voltando-se, enraivecido e furioso exclamou, 'Senhora, não tendes humanidade?'»
  Desumanidade com os humanos e humanidade com os animais num coração feminino (em que estes sentimentos contraditórios muitas vezes se encontram) é descrita no seguinte estilo por Mme Rieux: «Há certas mulheres que têm coração apenas para as bestas. O macaco da marquesa de ...mordeu tão perigosamente o braço de uma das suas criadas que se teve receio mesmo pela sua vida. Embora a marquesa ralhasse com o macaco e o proibisse de morder tanto outra vez, tiveram, contudo, de cortar o braço à criada. Alguns dias depois da sua cura, vendo a marquesa que não podia prestar os mesmos serviços que dantes, despediu-a prometendo que tomaria conta dela. Sendo censurada pela desumanidade deste acto, respondeu mal-humorada 'Mas que queriam que fizesse com aquela criada? Ela só tinha um braço.'»
   Umas linhas de juvenal podem servir de pendant a esta história:
«Um animal ocupa invariavelmente o primeiro lugar no coração de uma mulher que não ama nem o seu amante nem o seu marido. E a vida destes valeria muito pouco se o sacrifício dela salvasse a existência do seu cão, do seu gato ou da sua ave.»
 
 
 
 
Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 157/8
(...)
 
O veado encantado (o veado enfeitiçado) é o grande aterrador da imaginação simples dos camponeses na Grécia. É uma espécie de poder divino cheio de terrores sagrados. Traz a cruz nos galhos e o crescente (a Lua) no corpo; quando se abana as montanhas e os campos tremem; com as patas arranca as árvores; a alta voz é re-ecoada pelos mais altos picos das montanhas:
 
«Tem uma cruz nos galhos e uma lua no seu dorso.
Treme e tremem as montanhas, treme e tremem as planícies.
Ao mexer as suas patas muitas árvores arranca.
Falou com a voz aos guinchos, gemem as montanhas, ladeiras:
'Aqui onde cinco nem pisam e dez não atravessam,
Que procuravas sozinho armado e indo a pé?'»
 
       As tradições relacionadas com este veado são muito antigas e datam da era bizantina.
       Insectos encantados encontram-se aqui e acolá na Grécia. Existe uma lenda coríntia que descreve uma elevação escarpada entre Xylocastrum e Zura na qual um enxame de abelhas tinha estabelecido sua morada. Ninguém a não ser um destemido viajante tentou apanhar o mel dessa colmeia. Mandou que o baixassem com uma longa corda; contudo, no mesmo instante em que o baixaram uma extensão considerável foi visto contocer-se debaixo das maiores torturas pensando que a corda era uma cobra que procurava enredá-lo no seu abraço mortal. Incapaz por fim de suportar a tortura mental puxou da faca, cortou a corda e perdeu-se no abismo.
     Uma abelha vermelha encantada crêem os de Rodes que entra no quarto dos homens ou mulheres moribundos precisamente uma hora antes que eles ou elas expirem; e os de Samos falam das abelhas que fixam residência na casa do perjuro com um ruído inaudível a quaisquer outros ouvidos.»
 
 
 
 
Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 154

domingo, 30 de janeiro de 2011

Os Navios

       Da imaginação até ao Papel. É uma difícil passagem, é um perigoso mar. A distância parece curta à primeira vista, e embora seja assim quão longa viagem é, e quão prejudicial por vezes para os navios que a empreendem.
       O primeiro prejuízo provém da natureza assaz frágil das mercadorias que os navios transportam. Nos mercados da Imaginação a maior parte das coisas e as melhores são fabricadas de vidros finos e de cerâmicas transparentes, e com todo o cuidado do mundo muitas vezes se partem no caminho, e muitas vezes se partem quando as desembarcam para a terra. E todo o prejuízo deste género é sem remédio, porque é impensável que o navio volte atrás para recolher coisas da mesma forma. Não há hipótese de encontrar a mesma loja que as venda. Os mercados da Imaginação têm lojas grandes e luxuosas mas não de duração longa. As suas transacções são curtas, arrematam as suas mercadorias rapidamente e liquidam de seguida. É muito raro para um navio voltar e encontrar os mesmos exportadores com os mesmos géneros.
       Um outro prejuízo provém da capacidade dos navios. Partem dos portos dos continentes prósperos sobrecarregados, e depois quando se encontram em alto mar vêem-se obrigados a deitar para fora parte da carga para salvar o todo. De tal modo que quase nenhum navio consegue levar completos tantos tesouros quantos recolheu. As coisas despejadas são obviamente os géneros de menor valia, mas por vezes acontece que os marinheiros, na sua grande pressa, cometem erros e deitam ao mar objectos preciosos.
        Mal chegam ao porto branco do papel e são precisos outros sacrifícios de novo. Vêm os oficiais da alfândega e examinam um género e pensam se devem permitir o desembarque; recusam deixar que se descarregue um outro género; e de certas tralhas apenas aceitam pequena quantidade. Um lugar tem as suas leis. Nem todas as mercadorias têm a entrada livre e é estritamente proibido o contrabando. A importação de vinhos é impedida porque os continentes de que vêm os navios fazem vinhos e álcoois de uvas que crescem e amadurecem a temperatura mais generosa. Os oficiais da alfândega não querem para nada estas bebidas. São demasiado embriagadoras. Não são propícias para quaisquer cabeças. Para além disso existe uma companhia no lugar que tem o monopólio dos vinhos. Fabrica líquidos que têm a cor do vinho e o sabor da água, e deles se pode beber o dia inteiro sem que subam à cabeça. É uma velha companhia. Goza de grande reputação, e as suas acções estão sempre sobrevalorizadas.
         Devemos, porém, ficar satisfeitos quando os navios entram no porto mesmo que seja com todos estes sacrifícios. Porque ao fim de contas com vigia e com muito cuidado limita-se o número de recipientes partidos e atirados ao mar durante a viagem. Também, as leis do lugar e as normas alfandegárias são tirânicas em grande medida mas não de todo proibitivas, e grande parte da carga desembarca-se. Nem os oficiais da alfândega são infalíveis, e alguns dos géneros impedidos passam dentro de caixas fraudulentas em que se escreve uma coisa por fora e por dentro se tem outra, e importam-se alguns bons vinhos para banquetes excelentes.
        Triste, triste é outra coisa. É quando passam alguns navios enormes, com joalharias de coral e mastros de ébano, com grandes bandeiras desfraldadas brancas e vermelhas, cheios de tesouros, que nem sequer se aproximam do porto quer por todos os géneros que levam serem proibidos, quer por o porto não ter bastante profundidade para os acolher. E seguem o seu caminho. Vão de vento em popa sobre as suas velas de seda, o sol fulgura na sua figura de proa em ouro, e afastam-se tranquila e majestosamente, afastam-se para sempre de nós e do nosso porto constrito.
        Felizmente são muito raros estes navios. Apenas vemos dois, três durante a nossa vida inteira. E rapidamente os esquecemos. E depois de passarem alguns anos se algum dia - quando estamos inertes olhando a luz e ouvindo o silêncio - por acaso voltarem os nossos ouvidos mentais algumas estrofes entusiásticas, de início não as reconhecemos e atormentamos a nossa memória para recordar onde as tínhamos ouvido antes. Dificilmente acorda a antiga memória e recordamos que estas estrofes são do cântico que salmodiavam os marinheiros, belos como heróis da Ilíada, quando passavam os grandes, os excelsos navios e avançavam indo - quem sabe para onde.
 
 
 
 
 
Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 145-147
«Quando vestir as roupas negras e quando morar dentro de uma casa negra, dentro de um quarto escuro, abrirei de vez em quando o móvel com alegria, com desejo e com desespero.»

 

Konstandinos Kavafis. Poemas e prosas. Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. Relógio D'Água. Lisboa, 1994., p. 144

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Paraíso, XXXI, 108

Diodoro Sículo refere a história de um deus despedaçado e disperso. Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao traçar uma data do seu passado, não sentiu alguma vez que se tinha perdido uma coisa infinita?
Os homens perderam uma cara, uma cara irrecuperável,  e todos queriam ser aquele peregrino (sonhado no empíreo, sob a Rosa) que em Roma vê o sudário de Verónica e murmura com fé: Jesus Cristo, Deus meu, Deus verdadeiro, era assim, pois, a tua cara?
Há uma cara de pedra num caminho e uma inscrição que diz O verdadeiro Retrato da Santa Cara de Deus de Jaén; se realmente soubéssemos como foi, seria nossa a chave das parábolas e saberíamos se o filho do carpinteiro foi também filho de Deus.
Paulo viu-a como uma luz que o derrubou; João, como o Sol quando resplandece na sua força; Teresa de Jesus, muitas vezes, banhada em luz tranquila, e não pôde nunca precisar a cor dos olhos.
Perdemos esses traços, como pode perder-se um número mágico, feito de cifras habituais; como se perde para sempre uma imagem no caleidoscópio. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfil de um judeu no subterrâneo é talvez o de Cristo; as mãos que nos dão umas moedas num postigo talvez repitam as que uns soldados, um dia, cravaram na cruz.
Talvez um traço da cara crucificada espreite em cada espelho; talvez a cara tenha morrido, se tenha apagado, para que Deus fosse todos.
Quem sabe se esta noite não a veremos nos labirintos do sonho e não o saberemos amanhã.



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.47/48

domingo, 7 de novembro de 2010

Mutações

Num corredor vi uma seta que indicava uma direcção e pensei que aquele símbolo inofensivo fora outrora uma coisa de ferro, um projéctil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e enevoou o Sol nas Termópilas e deu a Harald Sigurdarson, para sempre, seis pés de terra inglesa.
Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um cavaleiro magiar; uma corda com várias voltas rodeava o peito da sua montada. Soube que a corda, que antes andara pelo ar e submetera os touros na pastagem, não era mais que uma gala insolente do arreio dos domingos.
No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e afastados e rodeava-os um círculo. Essa cruz apertada e limitava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a «máquina vil» insultada por Luciano de Samosata.
Cruz, corda e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que maravilham, quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir.

 

Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.43

A testemunha

Num estábulo que está quase à sombra da nova igreja de pedra, um homem de olhos cinzentos e barba cinzenta, estendido entre o cheiro dos animais, humildemente busca a morte como quem busca o sono. O dia, fiel a vastas leis secretas, vai deslocando e confundindo as sombras no pobre recinto; lá fora estão as terras aradas e uma vala atulhada de folhas mortas e um rasto de lobo no barro negro onde começam os bosques. O homem dorme e sonha, esquecido. O toque da oração desperta-o. Nos reinos de Inglaterra, o som dos sinos é já um dos hábitos da tarde, mas o homem, desde pequeno, viu a cara de Woden, o horror divino e a exultação, o torpe ídolo de madeira recamado de moedas romanas e de vestimentas pesadas, o sacrifício dos cavalos, cães e prisioneiros. Antes do alvorecer morrerá, e com ele morrerão e não voltarão as últimas imagens imediatas dos ritos pagãos; o mundo será um pouco mais pobre quando este saxão tiver morrido.
Feitos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre pode maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, salvo se existir uma memória do universo, como conjecturam os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. Que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou inconsistente perderá o mundo? A voz de Macedonio Fernández, a imagem de um cavalo rubro no baldio de Serrano e de Charcas, uma barra de enxofre, na gaveta de uma secretária de acaju?



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.39/40

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sonho de prisão

No violeta da noite ouço canções brônzeas. A cela é branca, o catre é branco. A cela é branca, cheia de um rio de vozes que morrem nos angélicos berços, das vozes angélicas brônzeas está cheia a cela branca. Silêncio: o violeta da noite: em arabescos através das grades brancas o azul escuro do sono. Penso na Anika: estrelas desertas nas montanhas nevadas: estradas brancas desertas: e depois igrejas de mármore brancas: pelas estradas Anika canta: um bobo de olho infernal guia-a, ele grita. Agora a minha aldeia entre as montanhas. Eu no parapeito do cemitério em frente à estação estou a olhar o deambular preto dos carros, para cima, para baixo. Ainda não é noite; silêncio olhudo de fogo: os carros comem recomem o silêncio preto no deambular da noite. Um comboio: esvazia-se chega em silêncio, parou: a púrpura do comboio morde a noite: do parapeito do cemitério os olhares vermelhos que se esvaziam na noite: e depois tudo, parece-me, se transforma num estrondo: Duma janela em fuga eu? Eu que levanto os braços na luz!! ( o comboio passa-me por baixo com um estrondo de demónio).

Canti Orfici

Rita Ciotta Neves. Dino Campana, Um Poeta Maldito (seguido da tradução de quatro poemas) .Babilónia n.3 pp. 121

domingo, 16 de maio de 2010

«Nas cordas do peito sopra uma profunda nostalgia. Em gotas de orvalho me quero deixar afundar e misturar-me com a cinza. Longes da memória, anelos da juventude, sonhos da infância e os breves regozijos e esperanças vãs de toda uma vida tão longa vêem, com as suas vestes cinzentas como a névoa da tarde após o sol posto. A luz descerrou noutros espaços os seus álacres panais. Pois não havia ela de regressar para junto dos seus filhos, que a esperavam há muito com a fé da inocência?
O que é que, de repente, pleno de pressentimentos, brota de sob o coração e sorve a doce aragem de melancolia? Também em nós te comprazes, obscura Noite. O que é que tu guardas debaixo do teu manto, que me toca a alma com uma força invisível? Um bálsamo precioso goteja da tua mão, de um molho de papoilas. Elevas as pesadas asas do nosso ânimo. Sentimo-nos obscuramente, inexprimivelmente comovidos. Vejo, numa crispação de alegria, um rosto grave, que para mim se inclina suave e pensativo, e até mim traz, por entre infinitas madeixas ondeadas, a tão doce juventude materna.»

Novalis. Os hinos à noite. Prefácio e Trad. Fiama Hasse Pais Brandão. 2ªed. Lisboa, Assírio&Alvim, 1998., p 19
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