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domingo, 20 de setembro de 2015

"Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hóteis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza
arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiél."

-"Oráculos de Cabeceira"
- Rui Pires Cabral

quarta-feira, 25 de março de 2015

MAL ENTENDIDO


"Era o meu sangue e tu pensavas
que não importava. No centro
de uma pequena audiência, o ruído
dispersava desde a nossa mesa
como um tumor a toda a volta.
Era o meu sangue, era o meu sangue,
tu não podias saber do que falavas.
Descias no túnel relapso, a tua boca
num alastramento cada vez
mais fundo.
Era o meu sangue,
que te faça bom proveito.
O mundo sob a superfície
não é silencioso."
-"Moradas"
- Rui Pires Cabral

terça-feira, 24 de março de 2015

COMPOSTO PARA A SUBMERGÊNCIA


"O tempo corre nas paredes livremente
mas não toma a direcção da morte: ela esteve aqui
desde o princípio, uma vocação adormecida
debaixo do estuque.
A manhã nasce viciada nos brandos venenos
que os móveis destilam, haverá pombas
sobre o parapeito, o senhorio arrastará o chinelo
sob um eco que caminha pelo tecto.
Nada poderá perturbar a fluência da penumbra
nos cantos para onde se varre a casa
aos domingos. A pele respira tenuemente
mas não posso falar de tristeza.
Este é o meu endereço, um lugar composto
para a submergência."
-"Morada"
- Rui Pires Cabral

terça-feira, 25 de março de 2014

HOSPITAL CANTONAL DE PERREUX

Aqueles jardins tinham o gosto da anestesia
no céu da boca, havia longas alamedas
poluídas pelo segredo dos pavilhões proibidos.

Os internados dormiam toda a tarde sem ruído,
às seis vinham a tropeçar pelo refeitório,
cumprimentavam no seu francês turvado pelos químicos:
'Ça va, m'sieur?' Eu andava à procura de um acelerador
para a minha viagem, interrogava constantemente
os meus oráculos, o livro aberto sobre as sombras
no terraço.

Eram mesmo para mim as mensagens que encontrei
nos muros de algumas cidades, ou foram só ilusões
engendradas pelo acaso? Eu não sabia responder
naquela altura, tal como nunca soube. Às vezes
o silêncio de Perreux era confortável
para os meus sentidos, trazia-me depressa
o sono. Na manhã seguinte, eu voltaria a partir.

- Rui Pires Cabral, A SUPER-REALIDADE,
2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2011

terça-feira, 22 de outubro de 2013

«Reflectido nos teus olhos, o céu
era um lugar inabitável.»



Rui Pires Cabral. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 238

''Tu já estavas prometido à tristeza''

Sing me to sleep

à Marjan, onde quer que esteja

o tojo abundava nas vertentes,
havia as rochas, os montes amarelos,
o rumor fundo dos bichos na arcadura
das chãs.

entre o meu silêncio e o teu
cresceu um verso com a tua boca
perto dos meus sentidos.

sabíamos que a chuva regressaria
eventualmente, as tuas cartas
ainda as tenho.

de Geografia das Estações



Rui Pires Cabral. Anos 90 E Agora. Uma antologia da nova poesia portuguesa. Selecção e organização Jorge Reis-Sá. Edições Quasi. 3ª Edição., p. 236
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